Terça-feira, 5 de Setembro de 2006

Jornalismo e Intervenção Social em Angola

PERIÓDICOS EM ANGOLA





A necessidade de participar num processo de reposição de alguma “verdade” na História que nos compete, isto é, na História de Angola, tem vindo, crescentemente, a ser sentida por um cada vez maior nº de intelectuais angolanos, fatigados que estamos deste permanente processo de transformação da História num elemento de ideologização do país.

Bem antes de mim, até leaderes como Mário Pinto de Andrade, iniciaram e lideraram esta nova fase de reposição desta dita “verdade” histórica. As denominadas “razões de estado”, ou, no caso, “razões de partido”, primeiro, e “razões de estado” de seguida, que foram fundamentando significativas “adaptações” históricas (e onde se envolveram até intelectuais honestos e profundamente estudiosos como o próprio Mário Pinto de Andrade), perderam sentido, felizmente.

O tema Jornalismo e a Intervenção Social em Angola surgiu-me da leitura de vários livros entre os quais os muito interessantes trabalhos de Muanamosi Matumona, “Jornalismo Angolano, história, desafios e expectativas”, o livro de Marcelo Bittencourt “Dos Jornais às Armas, trajectórias da Contestação Angolana” e o já clássico “Origens do Nacionalismo Africano” de Mário Pinto de Andrade, lidos e relidos no âmbito da elaboração de uma tese onde Angola é o centro.

Mas surgiu-me também por, nas mesmas leituras, ter encontrado razões para assumir interligações geracionais, nos discursos e nas práticas que devem, hoje, ser relevadas. Isto é, as lógicas nacionalistas na minha opinião, poderão não terem nascido isolada e incongruentemente na década de 50 do século XX. Elas, mais provavelmente, foram-se cimentando em um percurso histórico prolongado e acompanhando o nascimento de uma noção de Nação, há medida que o Estado, mesmo que colonial, se foi cimentando e onde o jornalismo teve um papel relevante de cimentação das mesmas lógicas nacionalistas.

Na realidade, a informação em Angola nasce, na minha opinião, no contexto de um processo fortemente interventivo, político, cultural e social, de afirmação sobretudo, de uma comunidade já bastante influente, ainda que em crise, e que hoje se denomina de crioula.

Vale a pena referir Mário António, “Este sentido de radicação, aliado ao processo de integração de naturais na vida da cidade que surgia, permitiu que se estendesse muito, cataliticamente, a influência de um grupo pequeno como era o de origem europeia, em Luanda, do século XVII ao XIX. Esse grupo soube, porém, prolongar-se em todos aqueles a quem transmitiu as suas técnicas culturais e a sua religião, em todos aqueles que integrou nas suas forças armadas ou na sua administração, em todos aqueles com quem dividiu interesses do comércio. Esses últimos serão encontrados nos mais recônditos lugares, contactarão com os potentados mais ciosos de seu isolamento, antecedendo a directa interferência de portugueses”, ( citando Mário António de Oliveira, Luanda, “ilha” crioula, através de Marcelo Bittencourt texto já referido, pág. 32).

Esta citação permite entender como alguns autores, não poucos, deveriam rever atentamente as suas opiniões sobre a construção desta nossa Nação. De facto, uma afirmação como a que segue, “Essa composição resultou na formação de...um grupo intermediário entre europeus da metrópole e a maioria da população negra rural”, (in Jill Dias “Uma questão de Identidade: respostas intelectuais às transformações económicas no seio da elite crioula da Angola entre 1870 e 1930”, pág.61), é ilógica e historicamente errada.

Não é crível que se possa entender que esta elite, que surge neste texto acima referido, enquanto mero “grupo intermediário”, o tenha realmente sido. Na minha opinião, certamente que não até meados do século XIX, e mesmo muito duvidosamente até ao final do primeiro vinténio do século XX, porque, primeiro, eram mesmo os reinos africanos e as suas elites que controlavam quase formalmente e quase que em contexto de Estado, mesmo que numa lógica de Estado de características feudais, ou pré feudais, a actividade comercial existente no espaço que hoje é Angola e, de seguida, porque é dessas elites que nasce esse “grupo intermediário” o que lhe terá dado uma autonomia relativa, em relação ao colonialismo português, bastante significativa, o que procurarei demonstrar na leitura do que segue.

Para o demonstrar, citemos um outro autor, Linda Heywood no seu livro “Contested Power in Angola”, que refere, “Quando Portugal aboliu oficialmente o comércio atlântico de escravos da Angola Portuguesa, em 1836, na sequência do Tratado Anglo Português de 1830 que baniu este comércio, as linhagens dominantes ovimbundu estavam profundamente envolvidas no comércio de escravos há já mais de meio século...Durante o período alto deste comércio, as feiras que estas linhagens hospedavam garantiam-lhes o monopólio sob esta actividade e eles ditavam as regras do comércio e quem se podia envolver no mesmo, assim como se garantiam uma parte dos rendimentos...e impunham taxas sobre os portugueses e os afro portugueses que comerciavam nas feiras”.

Esta informação, que apresentamos considerando estritamente os Ovimbundu, poderia ser alargada a outros reinos e etnias, pois o mesmo foi sucedendo em quase todos os reinos e etnias de actual Angola, sendo ainda verdade que a mesma actividade não se confinava somente ao comércio de escravos, ainda que ele fosse até ao terminus do esclavagismo, uma actividade económica dominante.

Aliás, a actividade comercial, aqui em Angola como em toda a parte, foi uma das principais causas, (a par da componente religiosa para o caso Angolano), pelo menos até ao segundo vinténio do século XX, estruturadoras das relações entre o sistema colonial, aqui o português e as elites dominantes dos reinos africanos.

Ora, como se vê pela citação atrás e apesar das mais que falíveis estatísticas portuguesas do século XIX, só é possível que a estruturação da elite crioula se tenha desenvolvido por entre os que desenvolviam tais actividades comerciais, por esta elite nascida entre a linhagem dos reinos africanos. Ora, e esta é uma outra questão importante, como se verá, em número, a mesma não podia ser assim tão pequena quanto se pretende fazer crer, até dada a dispersão de reinos africanos existente.


São estes factores, na minha opinião, a elite africana e o seu peso económico, social e político relativo significativo, que justificam que tivessem aparecido, em Angola, só no século XIX, os 16 títulos de imprensa citados no quadro deste texto e mais 46 não citados explicitamente mas referidos nas várias obras consultadas.

O seu aparecimento só pode ter acontecido também, por – a) haver capacidade financeira para adquirir os mesmos jornais; b) haver um nº mínimo de leitores interessados em os adquirir; c) haver um ambiente social justificativo do interesse pela sua leitura; c) haver um ambiente cultural justificativo do interesse em os ler; d) haver uma diversidade político cultural justificativa do seu aparecimento

Ora este conjunto de elementos foram surgindo, mais, foram-se complexizando, com o tempo.

Assim, o findar da actividade comercial centrada no comércio de escravos foi um dos primeiros elementos geradores de tal – com o seu findar, as relações com o exterior foi-se diversificando em produtos e certamente também contactos; a diversidade comercial terá certamente gerado uma redistribuição maior dos resultados da actividade comercial por um maior nº de pessoas; tal maior redistribuição terá criado um maior mercado de leitores, em nº e em capacidade financeira; humanizando-se a actividade comercial, libertando os que nela se envolviam, de um produto degradante e desmoralizador, como os escravos, ter-se–á gerado, entre portugueses, mestiços africanos e negros africanos, um maior interesse pela problemática cultural, religiosa e moralizadora e pelo debate de ideias, elemento que se foi reforçando à medida que o regime liberal estabilizava.

Tal é gerador do interesse por uma comunicação social livre e polémica. E o primeiro jornal inteiramente redigido e dirigido “por angolanos surge, ( e não certamente por acaso) e intitulou-se “Echo de Angola”, tendo o seu primeiro nº sido “editado em Luanda, em 12 de Novembro de 1881”, tempos antes portanto da Conferência de Berlim e relevando-se mais uma vez as relativas autonomias destas elites afroangolanas.

Eis porque se pode constatar, em abono desta ideia de uma significativa autonomia relativa, que polemistas como José de Fontes Pereira escrevam, em 1882, neste caso no O Futuro d’Angola, “...os filhos da colónia que possuem qualidade necessária estão a ser regularmente privados de empregos, em benefício de ratazanas que nos mandam de Portugal. Não empregam as suas inteligências para civilizar um povo, pelo qual não tem respeito nenhum e isto prova-se por aquele dito vulgar (com preto e mulato nada de contrato)”, (in, Dos Jornais às Armas, Mário Bittencourt),pois este tipo de teses relevam que estas elites pugnam seria e publicamente pela manutenção das suas prerrogativas.

É, sabido que é neste período final do século XIX que renasce a política de desenvolvimento, do espaço que hoje é Angola, enquanto espaço de colonização de povoamento, o que significou um acréscimo do nº de europeus a residir em Angola.

Como é também sabido que o impacto da Conferência de Berlim passou, ainda, pela imposição a Portugal e às suas colónias do princípio da liberdade religiosa. Ora, esta imposição veio gerar a introdução neste espaço geográfico de uma outra visão do mundo – para além da visão católica do mundo assistimos à introdução da visão de diversas igrejas cristãs, oriundas de diversos países, europeus e americanos, neste espaço, assim como de outras visões do mundo ainda mais abertas, como a maçónica e as liberais várias. Tal veio fazer acrescer a diversidade cultural.

Finalmente, o referido surgimento, em Angola, de um maior nº de europeus, veio abrir fissuras no seio das elites dominantes existentes, aliada que foi esta política de povoamento a uma política de favorecimento, na ocupação dos cargos públicos, como se viu, dos mesmos portugueses europeus.

Referiramos, por exemplo, Carlos Pacheco, citado em “Dos Jornais às Armas”, “...pelo menos até pouco mais de metade do século XIX, os lugares importantes na administração pública de Angola,...foram exercidos por membros das principais famílias da terra, ou seja, pelas aristocracias urbanas de origem local e por europeus há muito radicados na colónia...Os Galianos, os Pintos de Andrade, os Necessidade Ribeiro Castelbranco, os Vieira Lopes, os Matosos de Andrade, os Regadas, os Fançony, os Pinheiro Falcão, os Lemos Simião, os Escórcios, os Vieira Carneiro, os Rangéis, os Nascimento da Matta e´, naturalmente, os Maia Ferreira”.

Esta elite, adicionada às elites existentes no imenso interior do espaço que hoje é Angola, que se multiplica pelas felizmente várias etnias existentes, detinham, assim, um significativo poder em Angola.

O desconhecimento desta realidade, o afrontá-la mesmo em lógica desautorizadora, conduzindo estas famílias à perca de posses e de estatutos, como o procuraram impôr um nº significativo dos muitos governos portugueses, gerou os elementos justificadores da intervenção social que cada meio de comunicação social nascido em Angola, potenciou.

Lamentavelmente, Mário Pinto de Andrade, de certa forma, desautoriza o que atrás escrevo quando refere, “Praticava-se um jornalismo episódico e de amadores”, (in, As Origens do Nacionalismo Africano, pág. 50). Mas quando este autor cita Julio Castro Lopo, “ O perfil dos seus autores...”Empregados comerciais, agricultores, negociantes e lojistas, magistrados judiciais, médicos, professores, missionários e clérigos, oficiais da marinha mercante e de guerra”, acaba por se refutar a si mesmo, pois acaba por acentuar um escol profissional vasto e abrangendo as actividades da elite da época, o que abre de novo a perspectiva para um papel especial para este meio de comunicação que é a imprensa, junto de uma comunidade com interesse e capacidade em aceitar este meio de divulgação da informação e do conhecimento, como é a imprensa escrita, na época.

Por outro lado, já em 1901, “um grupo de angolanos decidiu levar a efeito a publicação em Luanda de um jornal a que tinham dado o nome significativo de Defesa de Angola e convidaram José de Macedo para o dirigir”. Este cidadão, socialista, será um forte defensor da autonomia de Angola, e em um livro publicado com esse título, Autonomia de Angola, defenderá, em 1910, que Angola se transforme “numa Confederação de três Estados: - o de Loanda, abrangendo....Congo Loanda e Lunda;- o de Benguela...; e o de Mossamedes e Huíla”.

Tal vem relevar a importância que era dada pelas elites em causa ao papel de uma informação que pugnasse, em seu nome, pelos interesses de Angola.

E não é possível deixar também de realçar que é o próprio Mário Pinto de Andrade que releva polemistas como José Fontes Pereira, atrás referido, que durante 20 anos, entre 1870 e 1890, escreve nos semanários luandenses, mas também em jornais de Lisboa e do Porto, defendendo teses como “a substituição de Portugal por um outro poder colonial em Angola”, (idem acima), ou, melhor ainda, conforme Mário Pinto de Andrade, quando “aventou que os “filhos da terra” deveriam ligar-se para discutir o que designou por “nacionalidade angolana””. E tal ainda antes de termos, em Angola, todas as fronteiras definidas.

Tais polémicas surgem porque os conflitos envolvendo as elites africanas são por estas enfrentadas com abertura e frontalidade e mostram, ao sê-lo, como elas deveriam ter uma autonomia que estaria para além do mero papel de meros “intermediários” de um processo colonial.

Citando do livro já referido “Dos Jornais às Armas, de novo José de Fontes Pereira, “A emancipação d’um povo tanto se pode fundar nas suas riquesas naturaes...na vasta ilustração de muitos dos seus concidadãos, como se pode fundar também na incuria, nos desleixos e despotismo da nação que o domina. O Brazil....achou-se em breve apto para proclamar a sua independencia. A Angola... assiste lhe o direito de sacudir o jugo que o opprime e esphacela e escolher quem,...lhe dê toda a protecção para o seu desenvolvimento moral e intellectual...”, não sendo difícil de se entender, perante este teor polémico, as confrontações crescentes entre esta elite e as elites portuguesas dominantes, que Portugal enviava para Angola.

A polémica, agressiva, contra o racismo, (então crescentemente dominante entre os europeus em geral e os portugueses em particular), conduz esta elite, por exemplo, à aceitação, com aplauso e ao aparecimento, em 1901, do texto “A Voz d’Angola clamando no deserto oferecida aos Amigos da Verdade” documento que ficará para a História da literatura antiracista e que, segundo Marcelo Bittencourt em “Dos Jornais às Armas”, é feito com base em textos “alguns inéditos, outros publicados na imprensa angolana, entre 1887 e 1901”.

Parte importante desta elite angolana mostra pois e ao contrário do que é afirmado em muitas versões “oficiais e oficiosas” da nossa História, uma dignidade significativa, não se tendo refugiado em contextos estritamente de mera assimilação da cultura portuguesa, ou da aceitação de um mero papel de intermediário em face de um colonialismo de povoamento nascente.

O que se deve realmente, também, assumir é a existência de uma contradição de interesses entre esta elite urbana, muito mais africana do que se pretende, e os reinos africanos que envolviam os espaços urbanos. E tal sucede porque esses mesmos reinos se assumiam diferentemente – não enquanto angolanos e sim enquanto comunidades autónomas, entre si e em relação a uma Angola que ainda se construía.

Vivendo num contexto liberal, soube esta elite africana, reconheça-se, e apesar dos conflitos inter africanos, aproveitar o mesmo contexto para combater contra os que a queriam abafar e destruir, assim como contra os que amesquinhavam o africano em geral.

Porque de destruição se tratava. Quando se afasta uma elite da oportunidade de gerir os cargos públicos a que tem direito e os negócios a que tem direito, amalgamizando-a como não se fazia no Portugal Europeu, também composto de uma enorme camada social analfabeta, essa elite não tem outra alternativa senão reagir ou desaparecer.

E como essa elite se encontrava afastada dos conceitos dominantes nos reinos africanos, não podendo por isso com eles aliar-se, até porque os mesmos entre si também se degladiavam, pode-se e deve-se afirmar que a sua batalha não foi nada fácil, mas tem de se dizer que soube reagir.

Mário Pinto de Andrade parece não entender, visivelmente, a estratégia, (assumida ou inconsciente, mas que eu creio mais assumida que inconsciente), desta elite quando assume o conceito Protonacionalismo para a descrever e quando refere que “Em fase com as aspirações nativistas locais, o ideário protonacionalista elabora-se a partir do lançamento do jornal O Negro, em 1911, e falece no início dos anos 30, submerso pelas contradições inerentes ao Movimento Nacionalista Africano”, (idem acima).

Esta elite o que foi fazendo, visivelmente, foi estruturar-se conforme pôde e tendo em conta as contradições do ambiente envolvente.

Inicia a sua actividade mal pode, polemizando logo nos primeiros meios de comunicação social existentes, em seu proveito, conflituando com os que se opunham aos seus interesses, como faz por exemplo conflituando, de forma aberta e agressiva, com Norton de Matos, o expoente português do colonialismo de povoamento branco e contraditório por isso com os poderes estabelecidos da elite africana, (ainda que liberal e antiracista ele próprio), e apresentando inclusivé a sua única alternativa no contexto democrático tipo de então – participando autonomamente nos combates eleitorais no segundo vinténio do século XX.

Escrever, em 1911, “Cremos ter chegado para todos nós, velhos ou crianças, adultos ou novos, o momento azado ....estamos fartos de pagar, estamos fartos de tutores, de Salvadores, e Senhores e tudo o que aspiramos é aprender a orientar as nossas ideias e libertarmo-nos de todas as formas de tirania e exploração com que nos têm escravizado, esmagando em todos nós todas as energias de inteligência e todas as manifestações de vida social”, escrever desta forma é estar, bem ou mal, na vanguarda das reflexões da época e os angolanos, esta elite angolana, fê-lo com a publicação de O Negro, de onde saiu o texto acima.

Em 1911 estamos no primeiro ano da I República, note-se e não é por acaso que nasce este orgão de comunicação social dos Estudantes Negros. O tempo permitia expectativas significativas e a elite africana cedo, como se vê, procurou abrir o seu espaço de participação neste processo de mudança que então se vivia.

Em resposta ao Império Colonial Português O Negro defende “Que a camada mais instruída e ilustrada da raça negra enverede todos os seus esforços a fim de constituir com os mesmos cultos um forte Partido Africano que pouco a pouco lutando e vencendo, consiga fazer triunfar as reivindicações da sua raça escravizada”, ( in Origens do Nacionalismo Africano, já citado e referindo O Negro).

Não há ainda, não podia haver, uma lógica nacionalista, pois não existia ainda Nação a defender, pois até as Fronteiras de Angola não eram ainda definitivas. Mas há visivelmente uma lógica de defesa de uma Negritude consciente, de uma Africanidade evidente, no título do Jornal, e na denominação do partido a criar.

Como existe uma evidente intenção de participar e impôr novas regras nesta fase de mudança, regras que lhes sejam favoráveis e geradoras de autonomias ainda mais significativas.

E, para quem conhece o manifesto que apresenta pela primeira vez a denominação Movimento Popular de Libertação de Angola, citemos de novo O Negro, para constatar da similitude de propostas organizativas, “Em cada província, em cada cidade, em cada vila, em cada aldeia, constituir-se-ão associações, grémios, caixas económicas, cooperativas, cujo ideal supremo seja a realização da máxima de Monroe aplicada à África e cuja missão será a de nos ensinar a ser livres e pela liberdade a ser bons; como fortes pela sabedoria, solidários uns com os outros, e pela solidariedade iguais ante um só direito – o direito à vida integral”. Só que O Negro é um “manifesto” elaborado em 1911 e o manifesto que refere o movimento popular de libertação de Angola é de 1956!

E desta similitude de propostas organizativas ( e até de discursos), podemos assumir a herança que em O Negro devemos procurar, para os combates pela Independência em todo o espaço africano de expressão portuguesa, que darão frutos sessenta e três anos depois.

De um combate, como o feito por José Fontes Pereira, entre outros, em favôr do conceito de “nacionalidade angolana”, ao combate desenvolvido por O Negro, em prol do aparecimento de um partido africanista, existem passos em frente importantes e que promovem uma comunidade, essa denominada de crioula, mas que arrasta consigo, cada vez mais, todos os africanos.

Só que este combate não se queda por aqui, pelo discurso e pela divulgação das ideias. Este combate concretiza-se no aparecimento dos referidos partidos africanistas.

Assim, da Luz e Crença, nascido em 1902, e desaparecido em 1903, de “pendor autonomista” como refere Mário Pinto de Andrade, ao Angolense, nascido em 1907, “orgão autónomo da opinião emancipada dos autoctones, tendo por alvo a evolução material e moral do grande império de Angola” estão-se a preparar os passos que conduzirão ao O Negro e este dá os passos que farão nascer os movimentos que na I República trarão para o Parlamento Português deputados africanos e africanistas.

Mas antes que tal suceda vão nascendo as referidas pelo O Negro associações, grémios e Caixas Económicas, sendo que em as Origens do Nacionalismo Africano Mário Pinto e Andrade descreve o aparecimento de 10 entidades que cedo criam problemas na sua relação com as autoridades portuguesas. Essas 10 entidades “integraram-se nos movimentos unitários que surgiram na capital portuguesa. O primeiro designou-se Junta de Defesa dos Direitos d’África”, JDDA, conforme refere Mário Pinto de Andrade.

É esta Junta que vai assumir no seu orgão oficial, a Tribuna d’África, que “Não há raças superiores nem inferiores...A incapacidade de certas raças é um problema que pode embalar muito antropologista emérito mas que a natureza se incumbe de desiludir “.

É entre debates internos que passam por divergências de vária ordem, inclusivé por diversos posicionamentos perante as várias linhas do Pan africanismo Internacional, (liderados respectivamente por Du Bois, que chega a estar em Lisboa e Marcus Garvey), que nasce a 21 de Março de 1921 o Partido Nacional Africano, que vai rivalizar com a Liga Africana.

É deste período, também de confrontos crescentes entre os crioulos e os colonos recentes portugueses, que tentavam usurpar as terras dos crioulos do interior, que surgem fortes movimentações e segundo Marcelo Bittencourt, “A região onde o confronto de interesses se mostrou mais evidente...aquela em que os crioulos possuíam as melhores lavouras, como no eixo Luanda-Malange.”.é então que “Em 1917, o advogado provisionário, António de Assis Júnior, foi acusado de ter orientado um grupo de camponeses a permanecerem nas terras que reivindicavam como suas. As autoridades coloniais encararam o acontecimento como sinal de revolta...ocorreu uma onda de prisões que redundou na expulsão de Assis Júnior e doutros crioulos para o Lubango”, facto que foi fortemente contestado pela Liga Angolana, “uma das principais associações crioulas”, conforme também Marcelo Bittencourt.

É útil citar aqui o próprio António de Assis Júnior, no seu texto “Relato dos Acontecimentos de Dala Tando e Lucala””Vª Exª sabe que, como procurador do Pimenta, é missão minha, dentro do razoável e bom senso, orientá-lo do seu dever em casos desta natureza, de harmonia com a lei. Eesta autoriza a oposição à força dos invasores ou esbulhadores para repelir a violência ao direito da sua propriedade (artº 2367º do Código Civil) e Vª Exª cujo desejo de conciliar manifesta, bem pode calcular o que resultaria em tais casos o emprego da força...Eo evitar conflitos é também, creia Vª Exª, o meu maior desejo.”, ( obra citada pág. 28). Este texto é, todo ele um libelo em defesa de um Estado de Direito, antiracista, democrático e que acentua, bem, o pensar desta elite angolana.

Em 1922, em Catete, surge uma nova situação de confronto, em volta do confisco de terras e de novo Assis Júnior defende os camponeses espoliados e violentados, alvo de prisões e desterros impostos pelo Alto Comissário Norton de Matos, com base na acusação de estas movimentações serem de cariz “autonomista de cunho racial implementada pelo segmento crioulo.

Marcelo Bittencourt refere também, é certo, que é desta época o aprofundamento da “diferenciação entre os crioulos e “incivilizados”, feita mesmo no âmbito da Liga Angolana. A par desta Liga Angolana aliás, existiria, desde 1907 mas legalizado em 1913, o Grémio Africano, como terá existido um Partido Reformista de Angola. Ambas as primeiras associações são ilegalizadas em 1922, “sob a acusação de “actividade separatista”, feita também por Norton de Matos e fortemente contestada pela imprensa, (também afectada pelas atitudes censórias, chegando-se à extinção de O Angolense, em Fevereiro de 1922), como foi contestada pelas estruturas associativas afro angolanas, em Luanda e em Lisboa.

O já referido Partido Nacional Africano, “de perfil conservador”, segundo Marcelo Bittencourt e a Liga Africana, de perfil reformista, e com quem se relacionava a Liga Angolana, continuarão, enquanto existirem, a bater-se pela autonomia das colónias, mas, sem dúvida, regime de Salazar irá travar todo este processo desenvolvido pelas elites africanas em geral e pelas elites angolanas em particular.

De qualquer forma, em 1930, ainda se assiste a um movimento militar que contesta o então alto comissário Filomeno da Câmara, conhecido fascista e que conta com alianças autonómicas alargadas, entre os brancos defensores dessa mesma autonomia e a elite crioula, em particular das regiões de Luanda do Dondo e de Malange.

Este movimento é travado após algumas escaramuças e Salazar pode então desenvolver toda a sua polítca expressa no Acto Colonial. Ele contará então, de certa forma, com o apoio de certos sectores dessa elite crioula, conforme relata Mário Pinto de Andrade, surgindo um Movimento Nacionalista Africano, em 1931 e um mensário denominado Mocidade Africana, assim como nascera em 1929 um Grémio Africano, de pendor fortemente colonialista, que pretenderá, entre outros objectivos, “promover o levantamento do nível intelectual e revigoramento físico dos indígenas da África Portuguesa”, (in, Origens do Nacionalismo Africano).

São deste novo período também as cisões neste movimento crioulo, nascendo a Liga Nacional Africana, em 1930 e a Associação dos Naturais de Angola.

Tais cisões estarão na base do aparecimento, nos anos 50 do século XX, das futuras movimentações de cariz já nacionalista, também em Angola, em um novo ciclo de intervenção, já político e menos social, já nacionalista e não autonomista.

Mas, na origem de tudo e tal não se pode mais escamotear, estão as movimentações do século XIX e dos primórdios do século XX, em particular na vertente da actividade escrita na Imprensa em especial, destas elites africanas que como já referi, se bateram em condições difíceis pelo que consideravam serem os seus direitos de cidadania no espaço colonial português e que este recusou integrar e promover adequadamente.



Jofre Justino
publicado por JoffreJustino às 18:08
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