Segunda-feira, 17 de Agosto de 2009

(3) Enquanto Republicano e Laico Sobre o Ultimatum e a República em Portugal

(Tendo como base o texto, O 31 DE JANEIRO, (Porto 1891), POR JORGE D'ABREU)

…Pois recordemos agora uma das razões, a mais importante sem dúvida, das que levaram ao Ultimatum britânico sobre Portugal – a expedição de Serpa Pinto, a fins de 1889, para “affirmar a soberania de Portugal nos territorios do Nyassa, que o nosso paiz reivindicava. Commandava-a aquelle major do exercito e compunham-na varios funccionarios e technicos. O engenheiro chefe da missão de estudo era o sr. Pereira Ferraz.” – e, claro, à implantação da I Republica em Portugal.
Tratava-se, como se vê pela composição da expedição, de um conflito nada africano, mas em tudo europeu, só que vivido no continente africano, como o relato a seguir explicita bem, sendo sem dúvida, também, uma expedição com claros fins militares, dada a sua enorme presença na mesma, e forte contexto “colonialista”, característico das relações internacionais da época,“Foi depois d'sto que o major Serpa Pinto, accudindo com mais gente á expedição e elevando o seu contigente a uns 6.000 homens armados, marchou sobre os negros revoltados e travou com elles em Mupasso sangrento combate. Os makololos deixaram mortos no campo uns 72 homens e muitos prisioneiros importantes. A expedição poz-se novamente em marcha apoz a victoria, que, diga-se desde já, teve no estrangeiro uma extraordinaria resonancia. Na Africa Oriental e principalmente na região sublevada o effeito não foi menor. O sultão Macanjira estabelecido nas margens do{23} Nyassa prestou vassalagem a Portugal. O chefe M'ponda apressou-se tambem a imital-o; o regulo Malipuiri e outro visinho dos makololos foram a{24} Quelimane receber a bandeira portugueza. Mas, emquanto isto succedia, o Times, dando conta do combate, fazia affirmações d'este theor: que o major Serpa Pinto enganara o consul inglez na região onde elle se travara, affirmando intenções pacificas, mas que, decorrido algum tempo, levantara conflicto com os makololos, fazendo n'elles grande morticinio e tomando-lhes duas bandeiras britannicas recentemente dadas por aquelle consul. Os makololos, julgando-se abandonados pelos inglezes, tinham então reconhecido a dominação portugueza. O major Serpa Pinto, accrescentava o Times, annunciara a intenção de conquistar o Chire até o lago Nyassa e convidara os residentes inglezes a collocarem-se debaixo da protecção de Portugal, tornando-os responsaveis pelas consequencias no caso de recusa. A imprensa franceza, por seu lado, occupando-se da victoria alcançada por Serpa Pinto, falava pouco mais ou menos n'estes termos: «a acção do major portuguez poz termo á comedia que a Inglaterra andava representando em Moçambique. Felicitamol-o por isso. Portugal deu um excellente exemplo. Esperamos que outras nações o saberão seguir na occasião opportuna para fazerem respeitar as espheras de influencia de cada um, e não permittirem as continuas invasões da Inglaterra no terreno alheio».
O texto que cito acima é bem claro. Britânicos, Portugueses e Franceses procuravam delimitar, na sequência da Conferencia de Berlim, terreno colonial em África e a maior potência do mundo de então, iria assumir, desta vez contra o seu centenário aliado, Portugal, o seu estatuto de primeira potência, com significativa veemência.
É saudável referir que, à excepção dos Estados Unidos da América, que defendeu o direito dos Povos Africanos, à Autodeterminação, todas as restantes potências assumiram a expansão e ocupação colonial como um dever, como os mais disparatados argumentos diga-se.
Na verdade, para os britânicos, o que tinha sucedido era, terem percebido na atitude de Serpa Pinto, , para além de uma ameaça aos seus interesses económicos, uma ofensa ao seu estatuto de potência imperial dominante, em especial vindo da parte da pequena potencia europeia que Portugal então era e que, diga-se, mantinha dada a sua aliança com o império britânico.
Assim, perante a afronta portuguesa, que na verdade não mais era que uma tentativa de impor no terreno a sua ambição de ocupar um território africano que ligasse o Atlântico ao Índico,“O marquez de Salisbury dirigiu ao governo portuguez uma nota que foi entregue ao sr. Barros Gomes pelo sr. Glynn Petre, ministro britannico em Lisboa. A nota, diziam n'essa occasião os telegrammas de Londres, tinha a forma de uma representação sobre a acção de Portugal na Africa do Sul e Oriental e pedia que o nosso governo repudiasse os actos do agente portuguez no districto da Zambezia. O marquez de Salisbury, affirmava-se, não usava de ameaças; a nota continha uma exposição de varios factos que asseverava terem occorrido e pedia a restauração do anterior statu quo na região em litigio; o governo inglez não podia permittir que fosse arriada a bandeira ingleza depois de arvorada por um representante responsável .. . Serpa Pinto, na verdade, objectava-se em Portugal, limitara-se a desembaraçar o caminho á expedição Ferraz perturbada pelos makololos e mais nada.
Isto passava-se em 18 de dezembro de 1889. A nota do marquez de Salisbury referindo-se exclusivamente ao supposto ataque da expedição portugueza contra os makololos, e não fazendo menção alguma dos outros assumptos pendentes entre a Inglaterra e Portugal sobre as suas respectivas espheras de influencia na Africa do Sul e Oriental e pedindo ao sr. Barros Gomes uma resposta prompta, o mais rapida possivel, e, no caso do ataque se confirmar, a chamada a Lisboa do major Serpa Pinto; o ministro portuguez dos negocios estrangeiros replicou que as informações até á data recebidas não confirmavam as interpretações dadas{26} pelo gabinete inglez aos actos do major, que «repellira sómente o ataque d'uma tribu hostil na bagagem da qual encontrara tres bandeiras inglezas». O sr. Barros Gomes terminava por pedir uma demora afim de poder communicar com o major Serpa Pinto. Entretanto, «para estar preparado para qualquer contingencia», o governo britannico decidia collocar as suas forças navaes proximo de Portugal. Persuadido de que «a reunião de barcos de guerra inglezes no Tejo augmentaria indefectivelmente a irritação dos portuguezes e entorpeceria a acção do governo lusitano nas suas negociações para o arranjo da questão relativa ao paiz do Nyassa», os couraçados britannicos receberam ordem de reunir-se em Gibraltar e de ahi se manterem «em expectativa dos acontecimentos futuros»…entre os que formavam a esquadra do Mediterraneo. Os couraçados Bendvor e Colossus, a 27 de dezembro, levantavam ferro de Malta com destino a Gibraltar. Em Malta tambem se encontravam as fragatas couraçadas Agammenon e Dreadnought; em Edimburgo egualmente se preparavam outros navios.”
A pressão sobre Portugal originou, logo, o despoletar de uma forte oposição, em especial Republicana, que desenvolvia intensa propaganda política antimonárquica como vemos neste texto a seguir, “…«Comtudo estava provado que a realeza perdera o prestigio, que a dynastia de Bragança alienara todas as sympathias, que as instituições tinham cahido no descredito e que, por conseguinte, o povo desejava vida nova»… «O que devemos á dynastia? Que principio superior anda ligado á existencia{27} d'essa anachronica forma de governo? A Patria?... Oh! nós bem sabemos que, quando Portugal se quiz emancipar do jugo da monarchia hespanhola, quem mais conspirou contra a Patria foi o Bragança idiota, por quem os ingenuos combatentes de 1640 andavam expondo a vida; sabemos como esta funesta dynastia tem, pouco a pouco, em presentes de noivado e como premio de serviços contra a nação, entregado as nossas colonias aos inglezes; sabemos como, na hora do perigo para a nossa independencia, para a nossa honra nacional, o sr. D. João VI fugiu covardemente para o Brazil; sabemos como o pae do actual reinante (D. Luiz) escreveu umas cartas criminosas a Napoleão III, no intuito de se formar em seu proveito e da sua raça a união iberica. A Liberdade?... Não a suffocam, porque não podem. O Bragança, que aqui implantou o systema constitucional, fôra um despota no Brazil. Escorraçado de lá, como não podia apresentar-se em frente da monarchia tradiccional representada por seu irmão, em nome de outro principio deu-nos a constituição que, mais tarde, seu filho rasgou á vontade, abafando os clamores angustiosos da nação, com a intervenção das armas estrangeiras...»”
Na comunicação social de então e no Parlamento, como, claro, nas ruas e cafés do país, em todos os locais onde se discutia política, o caso Serpa Pinto e as pressões britânicas tornou-se rapidamente num caso de âmbito nacional.
Não deixa de ser verdade que, inicialmente, até o rei Carlos assumiu uma posição “nacionalista”, o que afasta a ideia do carácter britânico deste rei, “Era necessario ouvir os dois expedicionarios e ouvir-lhes as allegações que, decerto, produziriam sobre a sua attitude em tão melindroso assumpto. Uma parte da imprensa acreditava até ingenuamente que a Inglaterra não tardaria a modificar o tom aggressivo das suas notas diplomaticas, substituindo-o por outro de feição conciliadora: «em primeiro logar, porque assim o quer o respeito devido por cada nação a todas as outras; em segundo logar, porque, se procurasse entregar á violencia a decisão d'um pleito em que devem ser ouvidos e escutados os argumentos de parte a parte e em que a justiça ou a equidade deve proferir sentença em unica instancia, não só concitaria a nossa resistencia mas, porventura, tambem provocaria a indignação do mundo». E essa parte da imprensa ia mesmo mais longe na sua ingenuidade: «A Grã-Bretanha sabe que, embora sejam enormes as suas forças comparadas com as nossas, poderia arriscar-se a revezes se desrasoadamente accendesse a guerra na Africa...»
Ao abrir-se o parlamento, o rei D. Carlos, que, pela primeira vez, se apresentava a desempenhar o seu papel constitucional de «chave de todos os poderes», lendo o classico discurso da côroa, sublinhou estas passagens, que a assembleia dos representantes da nação escutou com rara e justificada avidez:
«Recentemente as patrioticas aspirações da nação ingleza e do governo de sua magestade britannica, a dilatarem as suas vastas possessões na Africa, encontraram-se em mais d'um ponto d'esse continente, com o firme proposito de Portugal de conservar sob o seu dominio e de utilisar para a civilisação os territorios africanos que primeiro foram descobertos e trilhados pelos portuguezes, por elles foram revelados e abertos ás missões do{29} christianismo e ás operações do commercio e nos quaes as auctoridades portuguezas teem praticado os actos de jurisdicção e influencia consentaneos ao estado social dos seus habitantes, actos que sempre bastaram para significar dominio incontestavel.
«Este encontro poz em relevo desaccordos de opinião entre o meu governo e o de sua magestade britannica ácêrca das condições a que devem satisfazer e dos titulos que teem de adduzir as soberanias europeias em Africa, para serem reconhecidas pelas potencias, e d'esses desaccordos resultou uma correspondencia diplomatica que ainda os não poude sanar e que tambem houve de occupar-se de outras divergencias, posteriormente suscitadas, sobre o modo de apreciar um conflicto, occorrido nas margens do Chire, entre uma tribu indigena e uma expedição scientifica portugueza. O meu governo, inspirando-se no sentimento nacional e conformando-se com o voto unanime das duas casas do parlamento, tem diligenciado convencer o de sua magestade britannica do direito que assiste a Portugal de reger os territorios ao sul e norte do Zambeze sobre que versa a mencionada correspondencia, limitando-se, durante o incidente e em todos os seus termos, a manter dominios que sempre reivindicou, e reiterar declarações que sempre fez. E n'esta attitude persistirá com o apoio, que decerto lhe não ha de faltar, dos representantes da nação, esperando conseguir uma equitativa conciliação de todos os legitimos interesses, que promptamente restabeleça, como eu desejo, o perfeito accordo entre os governos de duas nações ligadas por vinculos de amizade e tradicções seculares».”
Rápida e infelizmente a pressão britânica e a falta de capacidade militar, mas também de firmeza negocial, conduziria o rei e o governo português a iniciarem uma sequência de cedências que fragilizariam para sempre a monarquia em Portugal, com a opinião publica de cada país a ser pressionada pelas respectivos meios de comunicação social, “O Times, referindo-se-lhe, dizia que, se a Inglaterra não tomasse promptas providencias «para apagar a impressão causada pelas incursões do major Serpa Pinto, toda a região dos Lagos Africanos se incendiaria; os makololos tinham visto a Inglaterra grosseiramente ultrajada; era necessario que a vissem reivindicar claramente a sua honra». Por outro lado, o governo portuguez, desejoso, sem duvida, de attenuar um pouco a irritação que o da Grã-Bretanha denunciara na nota de 5 de janeiro, havia ordenado a Serpa Pinto que recolhesse á metropole. Mas nem com isso o colosso amorteceu a pancada.”
O rei e o Governo tentaram ainda a saída de uma conferência internacional que abrisse a Portugal algumas portas que lhe permitisse sair com honra da situação gerada pela expedição de Serpa Pinto e que não passasse por um conflito militar, na Europa, com o império britânico.
Mas,
“Á nota do dia 8 d'aquelle mez, em que o sr. Barros Gomes lamentava que a Inglaterra nunca tivesse reconhecido o direito historico constantemente affirmado por Portugal aos territorios do Chire e do Nyassa, a essa nota, o ministro Petre respondeu no dia 10 com um memorandum—guarda avançada da exigencia formal. «O governo britannico, frisava esse documento, precisa saber se foram ou não enviadas instrucções rigorosas ás auctoridades portuguezas em Moçambique com referencia aos actos de força e ao exercicio de jurisdicção que ali subsistem actualmente». E, quasi sem dar tempo a que a sr. Barros Gomes digerisse o tom comminatorio{31} do memorandum, o ministro Petre entregou-lhe o famoso ultimatum concebido n'estes termos:

O governo de sua magestade britannica não pode acceitar como satisfatorias ou sufficientes as seguranças dadas pelo governo portuguez, taes como as interpreta. O consul interino de sua magestade em Moçambique telegraphou, citando o proprio major Serpa Pinto, que a expedição estava ainda occupando o Chire e que Kalunga e outros logares mais no territorio dos makololos iam ser fortificados e receberiam guarnições. O que o governo de sua magestade deseja e em que insiste é no seguinte:

Que se enviem ao governador de Moçambique instrucções telegraphicas immediatas para que todas e quaesquer forças militares actualmente no Chire e nos paizes dos makololos e mashonas se retirem. O governo de sua magestade entende que sem isto as seguranças dadas pelo governo portuguez são illusorias.

Mr. Petre ver-se-ha obrigado, á vista das suas instrucções, a deixar immediatamente Lisboa com todos os membros da sua legação, se uma resposta satisfatoria á precedente intimação não fôr por elle recebida esta tarde; o navio de{32} sua magestade «Enchantress» está em Vigo esperando as suas ordens.

O ultimatum tinha a data de 11 de janeiro.”

Estava dado um irreversível passo, ou para a guerra, ou para uma vergonhosa cedência.
O governo português e o rei passavam a estar envolvidos numa decisão, por eles tomada, que gerara mais repúdio que o esperado por parte da principal potência mundial de então, que ultrapassava visivelmente a sua capacidade de resposta e que, ao mesmo tempo feria gravemente os brios nacionais de todas as camadas sociais do país.
“No mesmo dia o sr. Barros Gomes entregava ao ministro inglez a resposta... Abria pela declaração infantil de que o governo portuguez julgava ter, com a sua nota do dia 8, satisfeito «por inteiro quanto d'elle reclamava o de sua magestade britannica; antecipando-se á segurança d'uma justa reciprocidade, que devia constituir o natural preliminar das suas resoluções, apressara-se a enviar para Moçambique as ordens mais terminantes no sentido de fazer respeitar desde logo, em toda a provincia, o compromisso tomado, no intuito de facilitar a realisação d'um accordo com a Grã-Bretanha, pelo qual o governo portuguez sempre pugnara». A resposta do sr. Barros Gomes fechava assim:

Na presença d'uma ruptura imminente de relações com a Grã-Bretanha e de todas as consequencias que d'ella poderiam talvez derivar-se, o governo de sua magestade resolveu ceder ás exigencias recentemente formuladas e, resalvando por todas as formas os direitos da corôa de Portugal nas regiões africanas de que se trata, protestando bem assim pelo direito que lhe confere o artigo 12.º do Acto Geral de Berlim, de ver resolvido definitivamente o assumpto em litigio por uma mediação ou pela arbitragem, o governo de sua magestade vae expedir para o governador geral de Moçambique as ordens exigidas pela Grã-Bretanha. Aproveito a occasião para renovar a v. ex.ª as seguranças da minha alta consideração.{33}

Resumindo: se a intimação era cathegorica, e a ameaça do governo inglez resumava inilludivelmente o proposito de vexar, de humilhar o pequeno paiz ao qual ella se dirigia, a resposta não podia ser mais subserviente, apesar do fraco esboço de protesto… Ao pontapé vibrado impiedosamente pela Inglaterra, Portugal offerecia uma curvatura de espinha só propria d'um lacaio... Custa dizel-o sem disfarce, mas é a verdade.”
Perante este evoluir dos acontecimentos, a comunicação social portuguesa, logo a 12 de Fevereiro, referia, “«O governo inglez, o philantropico e honesto governo inglez, recorreu, emfim, ao argumento que lhe é usual nas discordias com os povos pequenos. Recorreu ao argumento da força! O governo portuguez recebeu uma intimação formal: ou dá promptas satisfações, n'um curto praso, que deveria ter terminado ás 2 horas da manhã de hoje, ou marcha sobre Lisboa a poderosa esquadra que está reunida em Gibraltar, com ordem de bombardear a capital de Portugal! Lisboa, a nossa querida e formosissima Lisboa, bombardeada pelos canhões da Inglaterra! … a cidade dos navegadores heroicos e generosos, destruida a tiros de peça pelos couraçados da nação colonial por excellencia! É phantasticamente horrivel! …
… Que respondeu o governo? Salvou a sua honra, ou salvou a historia d'esta immensa vergonha, e Lisboa d'esta immensa catastrophe? Nada podemos averiguar. O ministerio esteve reunido até alta noite e do que decidiu só hoje, provavelmente, haverá conhecimento. A hora não é de recriminações… n'este momento solemne da nossa historia!»”
Continuando o relato por via da comunicação social portuguesa de então, pode-se constatar que o referido Ultimatum teve o efeito devastador, “O domingo 12, isto é, o dia immediato ao da recepção do ultimatum, consagrou-o a população lisboeta a commentar o acontecimento. Uma parte da imprensa, … , accrescentava que, emquanto o ministro inglez sr. Petre entregava a intimação formal ao sr. Barros Gomes, este recebia do governador de Cabo Verde um telegramma communicando-lhe que entrara no porto de S. Vicente com carta de prego um cruzador britannico; o nosso consul em Gibraltar{35} avisava-o, por seu turno, de que a esquadra do Canal lá estava concentrada, prompta ao primeiro aviso; o consul em Zanzibar tambem telegraphava participando a sahida para as costas de Moçambique de dez navios de guerra inglezes, acompanhados de um transporte com carvão e mantimentos. Perante esta situação, o governo consultara o conselho de Estado, que reunira sob a presidencia do rei D. Carlos. No conselho tinham votado pela satisfação ás exigencias da Inglaterra os srs. Barjona de Freitas, José Luciano de Castro, conde de S. Lourenço, Barros Gomes e João Chrysostomo. O sr. Antonio de Serpa manifestára-se pela arbitragem e por que só fossem mandadas retirar as forças portuguezas do Chire depois da Inglaterra a acceitar.”
O relâmpago da ameaça vinda pelo Ultimatum, propagava-se em fogos que se iam concentrado por toda a população portuguesa, e não só lisboeta. Mas, na capital do pequeno império português, os resultados eram assim relatados, “Ao começo da noite formaram-se grupos numerosos no Rocio e como do Colyseu da rua da Palma sahisse, em certa altura, um cortejo de patriotas que soltavam calorosos vivas á nação, ao exercito e á imprensa e morras ao governo e á Inglaterra, os grupos addicionaram-se-lhes e uma enorme multidão dirigiu os passos para a Sociedade de Geographia. Ahi, d'uma das varandas, falou o sr. Luciano Cordeiro:
—A Inglaterra, trovejou, pode expulsar-nos pela força, mas o direito subsiste! Precisamos protestar contra a pirataria britannica!...
Mas, da multidão, elevaram-se outras vozes:
—E contra o governo que nos atraiçoou! E contra os Braganças que nos jungiram á Inglaterra!...
Depois, a grande massa dos manifestantes subiu á parte alta da cidade a saudar a imprensa, que se{36} collocára abertamente ao lado do povo, verberando a affronta. As redacções do Seculo, Revolução de Setembro, Jornal da Noite, Jornal do Commercio, Debates, Correio da Manhã e Gazeta de Portugal foram alvo de manifestações de sympathia. Á passagem em frente da redacção do Dia, alguns dos populares deram palmas emquanto outros se limitaram a bradar: «Viva Portugal! Abaixo a Inglaterra!». Em frente ao Correio da Noite produziu-se uma manifestação hostil ao governo, manifestação que se repetiu junto do Reporter e que redobrou de violencia em frente das Novidades, com morras ao sr. Emygdio Navarro, aos «progressistas traidores» e gritos de: «Abaixo o chalet! Viva a Republica!....
….Na rua Serpa Pinto, a multidão, lembrando-se do nome do official que derrotara os makololos, rompeu em estrepitosas acclamações em sua honra. O enthusiasmo attingiu proporções indescriptiveis. Do terceiro andar d'uma casa habitada por uma modista, falou um academico convidando os collegas a realisarem no dia seguinte um grande cortejo patriotico. Foi delirantemente applaudido. Da rua Serpa Pinto, a massa popular avançou depois sobre o theatro de S. Carlos e irrompeu na sala dando vivas á patria e clamando contra a Inglaterra. Os habitués da nossa Opera,—a jeunesse dorée—tranzidos de pavor, não lhe oppuzeram a menor resistencia. Dentro e fora do edificio os manifestantes gritavam:
—Hoje não é dia de espectaculo, é dia de luto!...
Sahindo de S. Carlos, alguem lembrou que o consulado inglez era na rua das Flores. O rastilho propagou-se….E, só quando a policia interveiu, prendendo 61 dos populares, é que a{37} mole se desfez, mas preparando in mente para o dia seguinte novas e incisivas manifestações de antipathia á Grã-Bretanha e ao governo que promptamente se lhe submettera. Entretanto, esse ministerio pedia a demissão, abalado pelos primeiros symptomas da reacção nacional. Para mais o movimento de protesto não se limitára a Lisboa. Repercutira de norte a sul do paiz, revelando energias civicas que desnorteavam por completo a corôa e os partidos da monarchia.”
Mas os cidadãos continuariam os seus protestos e, em Lisboa, pondo crescentemente em causa quer o governo, quer o rei, quer o próprio regime monárquico, “…um cortejo de mais de quinze mil pessoas, sahindo da Escola Polytechnica, encaminhou-se para S. Bento.
Á entrada do Largo das Côrtes, do lado do mercado, um cordão de policias pretendeu impedir a passagem aos manifestantes, mas o cortejo rompeu-o e tudo passou. A guarda do palacio chamou ás armas e calou bayonetas. Em frente do edificio, destacou-se do cortejo uma commissão que foi falar ao presidente da camara. A policia dentro e fora do edificio era em tão grande quantidade que Fialho d'Almeida soltou esta boutade:{38}
—Os seios da representação nacional trazem hoje espartilho de guarda civil...
Os aspirantes de marinha, receiando que a massa de povo aglomerada no largo fosse maltratada pela força militar, formaram deante d'esta, offerecendo-lhe como que uma barreira, e a sua attitude provocou uma ovação extraordinaria, frenetica de enthusiasmo. D'ahi a momentos, a commissão que se avistara com o presidente da camara voltou para junto dos manifestantes, e communicou-lhes que o parlamento, tendo tomado em consideração a démarche patriotica da academia, occupar-se-hia, na sessão seguinte, dos assumptos que interessavam a defeza e a integridade do paiz. O cortejo andou depois a percorrer varias ruas da cidade, pronunciando-se hostilmente em frente dos jornaes caracterisadamente governamentaes e á noite repetiram-se as scenas da vespera, queimando-se bandeiras inglezas, victoriando-se em delirio os nomes de Serpa Pinto, Latino Coelho e outros democratas então em evidencia.
No dia 14, pelas seis e meia da tarde, sahiu do Café Aurea um grupo de estudantes soltando vivas á patria, á liberdade, á independencia nacional, ao exercito e á marinha. A esse grupo juntou-se na rua do Ouro e praça de D. Pedro muito povo e á porta do Café Martinho o antigo deputado progressista sr. dr. Eduardo de Abreu propoz à multidão que se envolvesse em crepes a estatua de Camões. Dito e feito. Os manifestantes enfiaram pela rua Nova do Carmo e o Chiado, explodindo sempre o maior enthusiasmo, aos degraus do monumento subiram alguns individuos, arranjou-se uma escada, passou-se o crepe em largas dobras rodeando a estatua e rematando sobre a corôa de ferro ali deposta pelos estudantes em 1880 e, no meio do mais respeitoso silencio, leu-se ao povo este cartaz, que foi depois affixado:{39}
Estes crepes, que envolvem a alma da patria, são entregues á guarda do povo, do exercito e da alma nacional. Quem os arrancar ou mandar arrancar é o ultimo dos covardes vendido á Inglaterra.
Uma prolongada e fremente salva de palmas acolheu a leitura d'este protesto, simples e curto, mas d'uma eloquencia esmagadora e o cortejo patriotico voltou, como nos dias anteriores, a percorrer as ruas de Lisboa, gritando febrilmente o seu desejo de liberdade e a revolta contra a ignominia com que a nação fôra aviltada. O ministerio progressista já tinha sido substituido por um outro de feição regeneradora, sob a presidencia do sr. Antonio de Serpa e em que figuravam pela primeira vez o sr. João Arroyo na pasta da marinha,{40} João Franco na da fazenda e Vasco Guedes na da guerra. Um dos actos do novo governo, mal subiu ao poder, foi o de procurar reprimir todas as manifestações patrioticas inspiradas no ultimatum, mandando espadeirar dezenas de populares que na noite de 14 de janeiro desciam o Chiado desferindo as suas exclamações de odio á poderosa Albion. O inicio, como se vê, não podia ser mais promettedor de brutalidade e arbitrio.”
Entretanto, a norte organizara-se a Liga Patriotica do Norte sob a égide de Antero de Quental, também Alfredo Keil, compusera o hino A Portugueza, que mais tarde, com a Republica, seria o hino Nacional, para o qual o sr. Lopes de Mendonça escreveria os versos…; “faziam-se diariamente conferencias publicas de esclarecimento e de protesto; os nomes dos{41} mais illustres africanistas andavam em todas as boccas aureolados de ruidosa celebridade. Houve mesmo uma epoca em que o de Serpa Pinto se ligou á narrativa d'um incidente sul-africano com proporções de feito heroico. Foi quando a imprensa deu publicidade á carta que elle dirigira ao agente britannico Buchanan que o intimara a não avançar pelas terras dos makololos, collocados sob a protecção do governo inglez. N'essa carta dizia Serpa Pinto:
Se na verdade os makololos estão debaixo da protecção do governo inglez e por conseguinte lhe obedecem, estou certo de que a minha passagem será facil e segura, porque o governo inglez, representado por v. ex.ª, só me póde dar facilidades, sendo eu d'um paiz que sempre teve abertas, franca e lealmente, as portas das suas colonias ás expedições scientificas inglezas, prestando-lhes todo o auxilio e amparo; mas, em todo o caso, se é verdade o que v. ex.ª, me diz, peço-lhe que convença os makololos de que a minha expedição é pacifica e scientifica, que lhes diga que pertenço a uma nação amiga da Inglaterra e que, portanto, não perturbem a minha marcha, perturbação a que v. ex.ª, n'esse caso, não pode ser considerado extranho; e assegurando-lhe que não posso consentir que um chefe negro queira disputar-me a passagem, ou fazer-me o mais insignificante insulto, asseguro, além d'isso, a v. ex.ª, que, se na minha entrada no territorio makololo eu fôr atacado, tomarei immediatamente a offensiva e acabarei de uma vez com essa causa constante de perturbação n'esta parte do Chire.»

E n'outro paragrapho:

«Emquanto á intimação que v. ex.ª me faz de não continuar no meu caminho, peço licença para{42} lembrar a v. ex.ª que eu só recebo ordens do governo de sua magestade fidelissima, de quem as recebo directamente e, como não recebi ordem em contrario, continuarei, tenaz e pacificamente, a minha jornada, arvorando uma bandeira de paz e só de paz, mas prompto a repellir com energia quaesquer aggressões sem motivo que me possam ser feitas».”
Poderia até ter acontecido que Serpa Pinto poderia ter sido o leader deste movimento. No entanto, “ longe de conservar esse favor popular, tornando-se o proeminente defensor das reivindicações da grande massa, optou, em breve, pelo serviço incondicional á corôa e essa attitude divorciou-o completamente do nucleo democratico, que o encarara durante algum tempo como uma das esperanças mais promettedoras. E, divorciado, perdeu o prestigio. Quando morreu, dez annos mais tarde, estava em absoluto esquecido.”
Nas forças armadas a contestação também ia acontecendo e durante,
“Dois dias a fio, um cortejo composto exclusivamente{44} de marinheiros da armada appareceu n'alguns pontos de Lisboa, saudando enthusiasticamente a bandeira da patria e dando vivas á independencia nacional. O governo atemorisou-se com o facto e ameaçou os manifestantes de os encarcerar durante trinta dias. Ao mesmo tempo, a policia recebeu ordem de empregar maior violencia na dispersão dos grupos patrioticos. Uma coisa e outra, porém, não impediram que a onda de indignação se avolumasse e que frequentemente se produzissem incidentes demonstrando que o divorcio entre a nação e a dynastia se accentuava cada vez mais. N'um dos ultimos dias de janeiro, o Gremio Henriques Nogueira, tendo dirigido caloroso convite ao povo de Lisboa, organisou uma manifestação imponente que, em marcha correcta e digna pelas ruas da cidade, se dirigiu ás legações de França e Hespanha a agradecer á opinião dos dois paizes, a sympathia e a solidariedade moral dispensadas nas horas lutuosas da affronta ingleza. O gabinete regenerador, entretanto—muito embora todos os grupos politicos lhe tivessem offerecido apoio incondicional no respeitante á questão anglo-lusa—fazia dissolver o parlamento, collocando-se em verdadeira dictadura. O presidente do conselho, sr. Serpa Pimentel, e o ministro dos estrangeiros, o sr. Hintze Ribeiro, preparavam-se assim para negociar com a chancellaria britannica o accordo final, sanccionando a expoliação contida no ultimatum.
Em 11 de fevereiro, repetiram-se na capital, e com maior intensidade, as scenas de agitação popular que haviam caracterisado os primeiros dias do mez anterior. Motivou-as a prohibição d'um comicio no colyseu da rua da Palma, em que se deveria «accordar nos meios de se enviar uma mensagem de congratulação e agradecimento ao povo francez e hespanhol e de se apreciar o pensamento e a opportunidade da liga portugueza anti-britannica{45} como base dos trabalhos da federação dos povos latinos». Pouco antes, como corressem boatos de que o governo projectava dissolver a camara municipal de Lisboa, o presidente d'essa corporação, o sr. Fernando Palha, apressara-se a inquirir do chefe do governo os motivos de tão arbitraria resolução, tomando ao mesmo passo varias medidas tendentes a resistir-lhe caso ella fosse levada á pratica. O sr. Serpa Pimentel, apesar do decreto de dissolução já estar lavrado, receiou publical-o e respondeu ao sr. Fernando Palha que os boatos eram insubsistentes, calculando que, recuando n'essa altura da situação, poderia conjurar uma nova explosão de sentimentos patrioticos.
No dia 11, á tarde, quando o povo se encaminhava para o colyseu da rua da Palma a assistir ao comicio, verificou-se que o governo não só decidira obstar á sua realisação como á d'um cortejo organisado pelo Gremio Henriques Nogueira, que se propunha, n'esse mesmo dia, collocar uma corôa no monumento a Camões. A policia e a municipal que estacionavam nas immediações do colyseu tinham modos provocadores. O povo, porém, conservou-se tranquillo e só ás 3 horas, quando se convenceu em absoluto de que a ordem do governo era irrevogavel, é que formou um cortejo, acompanhando na retirada do local os oradores que deviam falar no comicio: Jacintho Nunes, Manuel de Arriaga, Consiglieri Pedroso e outros. Chegado esse cortejo ao Rocio, Manuel de Arriaga, no intuito de fazer dispersar a multidão, subiu a um banco e dando um viva á patria, disse:
—Povo: o governo sahiu da lei prohibindo a nossa reunião. Conservemo-nos dentro d'ella, protestando contra os que a violaram.
O sr. Jacintho Nunes tambem proferiu algumas palavras no mesmo sentido. O povo, enthusiasmado, applaudiu os dois oradores. Mas não foi preciso{46} mais para a policia iniciar as violencias e as prisões. As correrias dos guardas lançaram no recinto largos minutos de panico. Chamou-se ali, como reforço, um esquadrão de cavallaria. O povo recebeu-o com demonstrações de sympathia e os soldados desfilaram socegadamente, acompanhados dos vivas da multidão. Os primeiros presos foram Manuel de Arriaga e Jacintho Nunes. Depois a leva, comprehendendo uns 130 individuos, seguiu para o governo civil, d'onde, no dia immediato, foi mandada para bordo do India e do Vasco da Gama.
Assim que o facto constou na cidade, o commercio fechou meia porta e quasi todas as associações realisaram sessões de protesto. Reappareceram os incidentes tumultuosos, a população voltou a agitar-se, os jornaes democratas abriram subscripções em favor dos presos e, ás ameaças de novas e maiores violencias, o elemento popular respondeu approximando-se mais e mais dos vultos então em evidencia no partido republicano…”
Joffre Justino
(Presidente da Academia de Estudos Laicos e Republicanos, e Director Pedagógico da EPAR, Escola Profissional Almirante Reis)
publicado por JoffreJustino às 11:32
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