Quinta-feira, 6 de Outubro de 2005

Uma Carta que me chegou de Luanda....

SOS Habitat – Acção Solidária(*)
« pela plena cidadania e um habitat harmonioso »

Ao Exmo Sr. General Serra Vandunen
Ministro do Interior do Governo de Angola

Luanda
C.c Exma Sra. Marisé Castro - Amnistia Internacional

EXPOSIÇÃO

Ref: 010/05-DH

ASSUNTO: Violação da Lei e dos Direitos Humanos pela Admnistração Municipal de Viana e seus agentes, assim como por oficias e agentes da VII Divisão Territorial da Polícia Nacional de Luanda.

1. O local, os agentes e os seus actos
1.1 Nos dias 26 e 27 do corrente mês, à plena luz do dia, um grupo de fiscais chefiado pelo Sr. Miguel, Chefe do Gabinete da Fiscalização do Município de Viana, na Província de Luanda, apoiados por agentes e sub oficiais pertencentes à VII Divisão Territorial de Luanda da Polícia Nacional, acompanhados ainda por elementos da Polícia Militar, sem que os cidadãos por eles vitimados tenham sido previamente notificados e sem a apresentação de qualquer mandato firmado por entidade com poderes para o efeito, alegando estar a cumprir orientações do Sr. Administrador Municipal de Viana para fazerem aplicar uma decisão administrativa súperior, com recurso a um buldozer, demoliram as cerca de 314 casas em que habitavam as famílias que constituem o Bairro da Cidadania (toponímico adoptado pelos moradores), localizado no Km 25 da Estrada nacional n.º 1.

1.2 A intervenção da SOS Habitat
Respondendo ao pedido de socorro dos membros da comunidade, eu Luís Araújo, activista Coordenador da Direcção e os activistas da associação SOS Habitat – Acção Solidária: Rafael Morais, Manuel Pinto, Alberto Sivi e Mateus Francisco Damião, fizemo-nos presentes nesse bairro quando a demolição já se encontrava em execução e solicitamos aos fiscais da Administração do Estado e aos agentes da Polícia Nacional para que, caso o tivessem, nos apresentassem o mandato que os autorizava a proceder à demolição que já decorria. Como resposta comunicaram-nos não ter nenhum mandato escrito e que tal não era necessário porque estavam a cumprir ordens da Administração do Estado.

1.2.1 Rejeição do apelo cívico dos activistas ao respeito pela ordem e pela legalidade
Colocados face ao facto da demolição não estar autorizada por um mandato conforme à Lei, informei-lhes que, nessa circunstância, estavam a cometer um crime grave contra a vida desabrigando as pessoas, assim como contra a propriedade destruindo bens particulares e, portanto, contra entidades com direitos e liberdades cujo bem-estar é a razão de ser do Estado que tem a obrigação de proteger o cidadão e as suas propriedades ao invés de, por via dos actos dos seus agentes, ser usado contra os cidadãos como se duma associação de malfeitores se tratasse.

Este apelo foi por duas vezes feito, a primeira a um adjunto do Sr. Miguel e aos agentes da polícia que o circundavam e a segunda ao próprio Sr. Miguel e aos seus auxiliares. Tentamos assim apelar para que parassem o cometimento em que estavam a incorrer.

Mas, como resposta, com os dedos sobre os gatilhos das armas do nosso Estado, prontas a ser usadas contra as pessoas da comunidade e os activistas cívicos da SOS Habitat - portanto à mão armada - indicaram-me a Administração Municipal de Viana para me ir queixar, e sem qualquer hesitação ordenaram ao condutor do Bulldozer para continuar a demolição. Perante esta atitude para com o nosso apelo e comportamento pacifista e perante a evidência de não podermos, nem querermos, reagir com violência, vimo-nos reduzidos ao papel de espectadores dum acto de terrorismo em que pela mão dos seus agentes, às ordens dos seus superiores hierárquicos, colocaram o “nosso Estado” contra nós, o povo seu constituinte.

1.2.2 É relevante reter-se que, mesmo perante o nosso apelo à tomada de consciência sobre a natureza abusiva do poder de autoridade e criminosa da sua actividade, nenhum dos fiscais e dos agentes da polícia, se demoveu, desistiu ou tentou demover os seus colegas do cometimento dos actos com que, alegadamente, a mando de entidades superiores, visavam, pela violência, desalojar e expulsar cidadãs e cidadãos dos seus sítios habituais de residência cuja posse, para todos os efeitos, detêm de modo legal.

1.3 A legalidade da posse da terra pelos membros da comunidade
Exmo. Sr. Ministro, retenha que a maioria das vítimas ocupa de forma legal os terrenos que habita nesse bairro. Legalidade decorrente do efeito de deferimento tácito, (estabelecido como norma, em vigor, pelo Art.º 57 do Decreto Lei 16A/de Dezembro/95 ) que o Estado é obrigado a respeitar plenamente, subordinando-se ao rigoroso cumprimento da Lei, conforme estabelece a Lei Constitucional da República de Angola.

As vitimas da demolição e tentativa de expulsão à mão armada com o fim de as esbulharem da posse dos seus sítios habituais de residência, como é do conhecimento do G.P.L. - que os recebeu - podem demonstrar que fizeram a entrega de requerimentos acompanhados de croquis de localização dos seus lotes de terra, tendo já decorrido o período de tempo de (90) noventa dias, findo os quais, por imperativo desse Decreto Lei, por não terem merecido qualquer despacho, se tornaram titulares dos direitos sobre esses terrenos que solicitaram e para que, conforme à norma, pagaram à Tesouraria da Administração do Estado os encargos cobráveis no ato de recepção dessas solicitações.

Mesmo nos casos – minoritários na comunidade em epígrafe - em que essa posse não está legalizada por deferimento tácito ou por outro instituto legal, é no entanto legítima por ser usufruída de boa fé, porque esse usufruto visa a satisfação do irrecusável direito natural ao abrigo que assiste a todo o ser o humano. Abrigo e direito de que ninguém deve ser privado, mesmo que por razões fundadas na utilidade pública, sem que lhe seja garantido abrigo condigno sob pena de quem proceda de modo contrário estar a incorrer numa violação dos direitos humanos.

1.4 Os crimes praticados contra as cidadãs e cidadãos
Sem especificarmos o extenso articulado da Leia aplicável ao caso, de modo sucinto, referimos aqui, que se registou: (i) um ataque à mão armada contra uma comunidade; (ii) praticado por agentes do Estado uniformizados; (iii) alegadamente mandatados pelos seus superiores; (iv) contra uma população indefesa no território do Estado de Angola; (v) visando a usurpação de imóvel pela violência; (vi) resultando no desabrigar de pessoas; (vii) destruição de casas e/ou de abrigos habitados; (viii) violação de domicilio; (ix) destruição e (x) roubo de bens privados, como chapas de zinco cujo destino é desconhecido dos seus proprietários. Tudo isso, como agravante, feito com o uso abusivo da autoridade e de meios do Estado.

1.5 As vítimas Directas dos actos aqui expostos

1.5.1 314 Famílias residentes no Bairro da Cidadania, sito no km 25 da Estrada Nacional n.º1, Cuja identificação podemos fornecer a qualquer momento em que tal nos seja solicitado. Este n.º refere-se apenas às vítimas de demolição, desalojamento e tentativa de expulsão forçada.

1.5.2 O Estado Angolano em geral e o GPL a quem se subordina a Administração Municipal de Viana, cuja autoridade, símbolos e meios, entre os quais armas de fogo que foram disparadas e cujo uso a lei determina com rigor, foram abusivamente usados contra a população perigando a vida de pessoas e conspurcando a imagem do Estado, praticamente, anulando-o in loco, porque, no momento em que decorriam esses actos, deixaram de existir autoridades do Estado - na área de circunscrição da Administração Municipal de Viana – que pudessem socorrer a população vitimada, pois o envolvimento da Policia Nacional tornou-a nula enquanto instituição de recurso para protecção das vítimas, manutenção da ordem e da legalidade no local, onde agentes da única Divisão de Polícia já protegia o desmando dos fiscais.

Retenha-se ainda que desse modo se perigou a ordem pública e a segurança do próprio Estado, pois tal acto contra os cidadãos esteve na eminência de suscitar uma resposta violenta da população e dos activistas cuja serenidade felizmente prevaleceu sobre a indignação que convocava o recurso ao legítimo exercício da resistência em defesa dos seus direitos, da legalidade e, principalmente, do Estado de Direito cuja ordem, no momento, os agentes do Estado subverteram, anulando-o.

Considere-se ainda que em caso de flagrante delito, verificando-se a ausência de agentes da autoridade no local, e no caso, dada a atitude de conluio dos polícias com os agentes duma violação massiva dos direitos humanos, estes tinham deixado de ser agentes da autoridade para passarem a ser delinquentes comuns que, defendendo fins diversos dos do Estado, abusavam do uso dos uniformes, símbolos e armas que lhes foram confiados pelo Estado e de que se serviam para cometimento de crimes.

1.5.3 A Policia Nacional, cujo comando local aceitou disponibilizar agentes para proteger a aplicação de decisões cuja legalidade não verificou nem lhe foi demonstrada pela apresentação de mandato de quem com competência para o efeito.

Já depois de na sua totalidade terem sido demolidas as casas do Bairro da Cidadania, sem que antes disso se tivesse prestado a auscultar a comunidade, durante um contacto tido no segundo dia entre a população e os activistas da SOS Habitat com o assessor jurídico da Administração Municipal e a Sra. Comandante Municipal da Polícia, ela não apresentou nem alegou a existência de tal mandato. Nesse contacto, já na rua, a Sra. Comandante insurgindo-se contra o meu exercício de esclarecimento das vítimas, contra a minha liberdade de expressão e de orientação política, conforme à Lei Constitucional, apodou-me, em público, de agitador por ter aconselhado as vítimas a moverem um processo judicial contra a Administração do Estado e a, caso não seja feita justiça, enquanto cidadãos eleitores, sancionarem aqueles que garantirem impunidade a quem as vitimou, nas urnas, aquando do próximo pleito eleitoral. No entanto, em nome da verdade, retenha-se que, nesse contacto, a Sra. Comandante declarou que não iria mais fornecer agentes para protegerem os fiscais na conclusão da expulsão da comunidade que, conforme havia sido perspectivado, seria definitivamente executada no dia seguinte.

1.5.4 O MPLA cujo Governo, em consequência deste tipo de actos é descredibilizado, e de que é militante o Sr. Carvalho, Administrador Municipal de Viana que é quem os fiscais que dirigiram o acto, disseram ser o mandante das demolições a que não é a primeira vez que recorre, para nos mesmos moldes, tentar expulsar essa comunidade. Numa das demolições anteriores, inclusive, incorreu na violação da liberdade de pessoas com a privação arbitrária da liberdade de alguns dos seus membros, de que resultou uma queixa entregue ao Delegado Municipal do Ministério Público pelo Dr. Advogado Luís Nascimento, Secretário Executivo do partido político Frente para a Democracia. Queixa essa que, “incompreensivelmente” não teve, até agora, qualquer efeito.

1.6 Solicitação

Em função do exposto com vista a que os danos causados pelos actos descritos ao Estado às cidadãs, aos cidadãos e às outras entidades cujo bom nome foi afectado pelos vínculos profissionais e políticos dos mandantes e autores dos actos aqui expostos, em nome da comunidade do Bairro da Cidadania, da SOS Habitat e da sociedade, solicitamos que proceda de conformidade com a lei a fim de que aqueles contra quem, em fórum próprio, for provado o cometimento de crimes seja objecto do tratamento que a Lei impõe.

Conquanto saibamos não ser obrigação de Vossa Excelência, mas considerando que as vitimas de tais actos se encontram desabrigadas a viver ao relento, apelando à sua sensibilidade, solicitamos-lhe que providencie no sentido de serem fornecidos materiais que ajudem as pessoas a protegerem-se minimamente dos elementos naturais e a terem a privacidade que os retire da exposição pública permanente em que a demolição das suas casas as colocou.


Em nome da comunidade do Bairro da Cidadania e da SOS Habitat, agradecemos ao Sr. Ministro do Interior as medidas que supomos terem partido de Vossa Excelência – após a mensagem telefónica que lhe fizemos chegar – por consideramos poderem estar na origem da mudança da atitude da polícia que impediu a expulsão da comunidade. Caso a nossa suposição não corresponda à verdade dos factos, solicitamos e agradecemos que nos desculpe o despropósito.


Queira aceitar as nossas mais cordiais saudações


Luanda, aos 29 de Setembro de 2005





Pela SOS Habitat – Acção Solidária

Luís Araújo
Coord. Da Direcção
publicado por JoffreJustino às 18:57
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