Sexta-feira, 10 de Março de 2006

FLUIDO REVELADOR de Miguel Justino

FLUIDO REVELADOR


Demian está numa sala de revelação de fotografias. O mobiliário é estritamente o essencial. As tinas de revelação, uma ou duas mesas e cadeiras de apoio. Estendais com papel branco pendurado por molas… (pouco mais). Revela uma fotografia de um terraço. Uma imagem introdutória para todas as que se seguirão pois contextualiza no espaço a acção que decorre no tempo passado.
(texto de apoio) .
Uma sombra desliza, sem peso, por uma parede, nada a pode parar, como nada pode impedir um nome, ou um canto, ou uma ausencia, ou um contorno, ou o teu rosto de existir. Espero a noite para estar contigo. É mais uma vez o desejo de ver-te novamente. Sentir as tuas formas. Será que estás perdida nesse mundo enorme, tão grande que me deixa longe de ti, talvez até do outro lado…
Vejo-te como se estivesses aqui ao pé de mim mas não sinto a loucura que me atingia quase de madrugada e que me fazia ficar acordado a olhar para ti. O dia chegava depresa e os primeiros raios de Sol faziam desaparecer a tua imagem reflectida no espelho em frente à cama.
Penso em ti sem sentido algum. Sem nenhum razão especial. Já não há muito que faça sentido hoje.
Acho que queria entrar no teu mundo. Queria que soubesses do meu. Talvez se uma noite destas também te sentires perdida te lembres de mim…. e saberei enfim que te encontrei!



Cimo de um prédio… sentada na beirada está Rute, com as pernas pendendo no vazio…


Demian - … olá
Rute (assustada) – oh!… não te ouvi chegar
Demian sorri tranquilizador, divertido, quer dizer algo..
R – O que é?
D – Nada… estava só a pensar o que faz aqui um “anjo” sozinho…?
R – Nada… a noite gosto de vir aqui sozinha de vez em quando.
D - se quiseres que eu….

Ensaia um gesto d quem s vai embora…

R – Não….. deixa-te estar. Às vezes apetece-me companhia. A sério!!
D – Hmm… Nao insistas mais…
R - … Não gosto de ter de pedir. Já há muito tempo que não exijo nada. De ninguém!...
(pausa)
D – … As estrelas… são uma boa companhia…
R – Ah sim, as estrelas…. As cadentes são lindas. Daqui de cima apetece saltar para o escuro…. Tal e qual uma estrela cadente…
D – Queres abrir os braços? Voar e ir embora?
R - Quero…mas... desculpa!...
D – De quê? Não te preocupes, tens a noite como companheira… (levanta-se)

No sala de revelação de novo, Demian prepara uma outra foto. As recordações por vezes atropelam-se e certas palavras são portais para outros momentos. Esta foto introduz o momento seguinte. (texto de apoio 2 ) Já não te vejo brilhar quando os teus olhos lindos sorriem para mim. Hoje o teu sorriso é apenas uma imagem, um mecanismo do teu corpo aliado a uma forma de estar que me surpreende em ti.
Não consigo deixar de pensar nas largas noites em que ficávamos acordados a falar de nada, à espere de um só beijo. Depois juntávamo-nos e era assim terno e quente calmamente até o Sol acordar.
Depois veio o resto.
Partiste, por nada. Sem razão.
Quando te encontrava olhava-te como se olha alguém muito especial. Mas tu já não brilhas mais. Não como dantes.
Para onde irias? Nunca aceitas-te o que te pediam: que participasses daquilo que consideravas uma tragédia. Ninguém exigia nada. Qualquer coisa no coração, impediu-te de os ouvir.. O que diziam não te tocava, mas sofrias por isso. Eram vozes à tua volta. Estavas sozinha e não gostavas da solidão!



No terraço, assumindo as mesmas posições em que a acção foi interrompida

R – Não vás! Sinto q algo me invade. O que digo, o que sinto até, parece sempre pequeno demais. Para onde quer que me vire a vida parece sempre pequena demais, sem espaço para mim. Estou tão perdida. E nem saio do mesmo sítio…
D – Estás tão ausente….
R – Tu também estás ausente…
D - Diz-me porquê!?...
R – Diz-me tu porquê! Porque perguntas? Se perguntares só te magoas…
( Havia um quase desprezo no seu tom. E impaciência. No entanto era a mesma, na harmonia dos traços, na claridade do rosto. Era as duas coisas: uma mulher meiga, desamparada e uma mulher dura, ausente. Com uma força que descobria e assutava…)

D – Nem consigo acompanhar-te… Achas que se acordasses noutro tempo, serias outra pessoa? É assim um vazio tão imenso?
R – Não, não é. É cheio de coisas. Já nem as consigo distinguir da realidade. Tu estás aqui mas eu não estou contigo… entendes? Como pensas que eu me sinto?! És tu que me tornas ausente!
D – Mas eu estou aqui! Isto é real, existe! Se não acreditas que estamos juntos, acredita em mim, está aqui a prova! (agarra-a)

(Foto)

R – Ah sim?... então também deves estar doido.
D – Do que é que tens tanto medo? De quê?
R - … De tudo o resto, a frieza, triunfo, secura, apatia. As pessoas... … a noite, é amiga. Está sempre ali, nunca me incomoda… estou cada vez mais louca!
D – ... tão cheia de sentimentos…
R - … maus sentimentos..
D – Bons sentimentos. Precisas tanto de carinho que quando te toco no cabelo quase te agarras a mim para eu não fugir. Não te feches tanto!
R – Queres curar-me? Vais tratar-me?... não me podes cobrar estas sessões (riso trágico)

Demian agora revela a foto desse riso que tanto o impressionou de felicidade ou desespero. (texto de apoio 3)
Perguntas. Tantas questões. Todas frustradas. Queria fazer algo por ti, mas nunca soube bem o quê.
Quem era ela afinal? Não foi por medo que a deixei. Consegui afinal o quê? Nada…
As minhas palavras devolvias ao vazio. Desde o dia em que nos separámos não a voltei a ver. Acho que ficou lá…. Sinto-me um pouco triste….
Olhei-a como se olha uma rosa num deserto qualquer. Não chorei porque não quis… Mas apeteceu-me chorar!! …..




No cimo do telhado a acção prossegue onde foi interrompida.

D – Estou triste contigo. Não me respondes a nada. Isto são conversas surdas.
R – Se pudesse respondia-te… tu mereces. Mas não consigo… Na verdade nem vale a pena. Não queiras saber, nem sequer te preocupes…
D – Não sei como. Fascinas-me… e aqui dentro existe um espaço tão grande….
R – Tu és como todos os que andam à procura. Seja o que for que encontrem é indiferente.
D – Não sei se estou realmente à procura. Sei sinto sempre a falta de algo…… sempre. Aterroriza-me pensar nisso.
R – E o que é “isso” afinal? Consegues-me explicar?
D – Não há explicação… só nós temos total acesso a nos próprios. Muitas vezes não conseguimos é expressar o que sentimos. Isso sim, é um problema.
R – Para os outros talvez. Não para mim.
D – Tem sempre de partir de ti, anjo…
R – Mas para quem falamos nós afinal? Para quem? Ninguém nos ouve!! Não vou ser normal por conveniência. A toda as hora…
D – Falamos só de nós para os outros. É um ciclo que se completa no ponto de partida.
R – Pois a solidão aqui permanece inabalável (coloca a mão logo abaixo do peito) precisa de mim. Tem poucos amigos e eu faço-lhe companhia enquanto precisar…
D – Não precisas. Estou aqui contigo. Não tens de estar só. Eu posso ficar…
R – Ficas comigo? Ficas comigo? Fica comigo - fica comigo, fica, fica….fica…
(já não se ouvem as últimas palavras, abafadas pela cabeça enterrada no peito)
D – Claro que fico… (abraçam-se por um longo momento)


A foto deste abraço é a que Demian está a revelar agora. Uma foto dos dois, pois é sempre de fora para dentro que se fantasiam as vivências.(texto de apoio 4) Uma pequena parcela do Universo é um louvor à recordação de uma presença que permanece em mim. Qual de nós mantinha o outro prisioneiro?... de essências, silêncios esmagadores, normas e emoções extravagantes e desmedidas. É uma tempestade o que transportamos cá dentro. Culpados? Apenas de normalidade num mundo que padece de sentimentos. As pessoas vivem juntas como estrelas, sempre à procura de lugares mágicos no céu, sonhando sem descanso com tudo o que está algures, nunca prontos para partir amando alguém que está mesmo ali ao lado.
Prendi todos os que amei. Prendi nos momentos mais belos da minha vida. Fechei nas mãos a plenitude de cada hora. Os braços ainda me doem com desejo de a abraçar!


Voltam a abraçar-se e o tempo passado retoma o movimento. (m`usica)

R – Sshhhh… os sons assim… consegues ouvir? Que canção é esta?
D – Não sei. Não consigo ouvir nada.
R - … escuta... entre o silêncio. Presta atenção.
D – entre o silêncio? … …
R – À noite é assim… baques fortes como um coração a bater… um violino... (desprende-se e ensaia um passo de dança) Podia ter sido bailarina… mas desisti.
D – É pena…
R – Não, nem por isso. É para outros.
Ficava aqui a noite inteira a escutar esta cadência. Umas horas atrás estavam pessoas na rua, demasiado reais… e não havia nada..
D – Não havia cadência…? (arriscou)
R – Não havia nada…. alguém diz a verdade? Alguém luta? Onde está a criança que eu fui? O que fizeram de nós? O que nós deixamos que nos fizessem?O que acontece aos sonhos? Para que é que servem? Para queimar?Quem são esses que correm, matam?... que não vêem… que fogem… do que fogem? É como se não existisse ninguém Será que a culpa é do destino?
D – Eu acredito na inocência do destino.
R – Essa é forte… Inocência?! (prende um cigarro entre os lábios)
D – Toma… (lume) Não penso muito nisso. Não faz grande sentido.
R – Pois. Não faz. Já nada faz muito sentido. Mas as pessoas reais também não se importam. (pausa)
Escuta.... Já sentes o silêncio?
D – Já o consigo ouvir (atrapalhado)… mas não o sinto (mentiu)
R – Esta música é tão bonita. Olha! Quando eu dançava era assim. A rodopiar de um lado para o outro… dançava muito bem e as pessoas gostavam a sério. Eu rodava, rodava, rodava… vê! Vê!!




Na sala de revelação, Demian prepara a foto do bailado da Rute. (texto de apoio)
Menti demais. O silêncio escapuliu-se do telhado e foi procurar a sombra de outras estrelas.Éramos duas pessoas que o acaso fez encontrarem-se num mundo que descobrimos nesse parentesis de noite à nossa volta. Uma única vaga que pudemos retirar do oceano, ou um reflexo de Sol.
Os seu olhares maravilhosamente expressivos, mergulhavam no fundo da minha alma como se de uma alta janela se lançassem. As consequências da nossa história fazem-me aguardar uma nova cadência, A tua ausência dói e deixa a sua marca. Os meus olhos pesados sem a tua imagem, as minhas mãos sem tacto no vazio das tuas. O sonho traz a memória mas é a realidade que me aproxima de ti, agora que os dias correm depressa demais e as palavras ficaram presas numa fracção de instantes. Não depende tudo da interpretação que damos ao silêncio que nos rodeia?
Ela dançava, rindo e suspirando e respirando tudo a seu favor. Dançava os seus medos, dançava para atender a criticas que não podia ouvir, movida por alucinaçoes que não tinha.

Continua a rodar.

D – Tem calma. Pára! Meu deus! Pára! Estás a fugir!!
Não há ninguém a dançar aqui…. Não há música nenhuma! Calma… pára um pouco.
R – Dá-me uma razão para isso! Uma só e eu paro para sempre. Uma…
D - …. Não posso. Porque é que não vamos para dentro?
R – Para dentro não. Para quê? Não há lá nada à minha espera.
D – Eu não me vou embora. Fico contigo. Mesmo!
R –… não me consigo dar a ninguém. Continuo perseguida. Tudo o que dizes até pode ser verdade, até podes ter razão, mas é mais forte do que eu.
D – Vai chegar a altura em que vais ter de ceder.
R – Ceder? Talvez… libertar-me. Mas não. Não parece possível libertar-me.
Eu…
D – Eu…
D – Eu libertei-me a tempo de estar contigo…
R – … E como era antes? Era como uma prisão?
D – Sim. Penso que sim. Uma prisão todos os dias diferente.
Um dia acordei, olhei-me no espelho e decidi abrir o peito….
R – Choras-te de amor?
D – Chorei… mas não só de amor.
R – Como é bonita a saudade do que está assim dentro de nós! Nunca soube suportar a passagem das coisas. Tudo o que flui, tudo o que passa, mexe e sufoca!
(pausa)

(pausa!)

D – Vamos…? Ofereço-te um café.
R – Mmm… café. Está frio. Tanto frio… e já não há cadência.
(afastam-se juntos, lentamente)
D – Porque é que vens aqui à noite?O que é que podes estar `a espera de sentir?
R – Hoje sinto frio. Está muito frio esta noite.
D – Não era bem isso…
R –Paz. Muita paz. Aqui em cima sinto-me como se pertencesse ao vento. Há momentos em que perco o comtrolo e fico à espera, à beira do abismo
E de repente deixo-me ir…

Na sala de revelação, apercebemo-nos que Demian pendura uma última foto. Uma onde se apercebe um fluido, um movimento, semelhante a recordações que chegam e vão como uma maré. Sai da sala deixando atrás de si os estendais repletos de fotos-recordações de todos os momentos passados na companhia da Rute. (texto de apoio)
As palavras eram as estrelas da noite.
Podia ficar a noite inteira a seguir esta cadência, atrás da história. Agora q já passou quase uma hora, estará alguém a chorar no andar de baixo…? Vêm à cabeça restos de canções antigas, todas elas trazem outra história diferente. Mas só mais daqui a pouco é que me vou levantar e caminhar para a porta. Apesar de tudo continuo a seguir a minha intuiçao. Onde me vai levar não sei, mesmo temendo a minha vontade, continuo a segui-la. Provavelmente verei o mundo com outros olhos, porque é contigo, só contigo, que eu o quero ver. É a tua voz que me chega contudo, já. Mesmo que só retornes daqui a muitas noites.



END







TEXTOS DE APOIO X

.1. Ela desloca-se para a visibilidade vestida do seu corpo. Fica ofuscada. Por a visibilidade ser aguda, embora seja noite escura no mundo, ela é brilhante por todas as superfícies serem brilhantes, e olharem de modo tão metalicamente rígido e fixo que o corpo cede e desaparece de si próprio para mudar de forma e ressuscitar brilhante. Então ela torna-se outra e a sua visibilidade resplandece na escuridão e é um corpo, o seu…
Per Aage Brandt



2. Olhava agora a dançarina que ocupava todo o espaço numa dança sem braços. Dançava como se não pudesse seguir o ritmo da música. Dançava como se não ouvisse o som. Dança isolada e separada da música, de mim, da vida.
Ela dançava numa música com o ritmo dos ciclos da Terra, voltava-se ao voltar-se a Terra, virando todas as faces, ora para o escuro, ora dançando em direcção à luz.
A tremer agitada ficou a olhar para os braços agora estendidos diante dela.
Anais Nin


3. Os braços foram-me tirados, cantava. Fui punida por abraçar. Abracei. Quis abraçar a luz, o vento, o sol, a noite, o mundo inteiro e quis retê-los. Quis acariciar, curar, embalar, aclamar, envolver, cercar.
Forcei-os e prendi de tal modo que se partiram, partiram de mim. Tudo passou então a evitar-me. Estava condenada a não prender.
Anais Nin







4a) È Inverno. As águas geladas e as ruas desertas.
Ela fresca e decidida, eu alheio. Ia ao lado dela, como se natural, e aquela mulher não era natural, exagerava, em cada gesto. Ou, talvez os outros, que a observavam, achassem que ela exagerava, porque se tinham desabituadao da espontaneidade. Os outros eram o resto… … Quando se assumiam, os outros passavam a ser o resto. E vinham os arrepios: também eu assumira esses valores, desistindo?Porquê? A desistência, a indiferença, a distância cultivadas, eram uma forma de triunfar? De me desobrigar? Às vezes pesava-me. Depois fazia por esquecer.
Fixei-a, hesitante. Vi-a bem: olhos de pássaro, a maneira desajeitada de se enrolar; era um bicho, sem dúvida.
Mas tudo era natural. Ouvia vozes ao fundo. Via os vidros embaciados e as ruas abandonadas, a luz branca.

b)- Isso entristece-me tanto.
- Eu também,, deixa lá!
(silêncio)
- Ficaste magoada quando te disse que não admitias nada?
- Sim, mas não admito. Nunca por nunca. Não me queres aqui?
Queria-a. Bem bastava o frio… Tinha medo que se fosse embora.
- Queres que seja uma pessoa?
- Não és?
- Se tiver de ser… Eu sou um cisne! Vês as minhas penas brancas?As que estão caídas aos teus pés? As outras perdi-as. Vínhamos todos juntos, eu desci para me refrescar.Despi as penas. Não as encontrei mais. Procurei, procurei… e os outros não esperaram, foram-se embora. Era noite, assustei-me. Andei às voltas, a cidade estava às escuras, mas havia uma luz, aqui em cima. E foi a essa luz que me agarrei

…b) Pareceu outra vez de pedra, a fixar-me com raiva. Ia além do desprezo. E percebi que ela gostava de mim. Perguntei-lhe.
- Era capaz de viver contigo. Deste tudo o que tinhas para dar. Foste claro: querias alguém que te aquecesse. Mas havia tantas outras coisas antes! Cisnes, pássaros, nuvens que me acompanharam…. Tu fechavas-me disso e eu tive medo.
- Gostas de mim?
- Gosto. Escolhi-te.
- Tens a certeza?
- Tenho. Para sempre…
- Meu amor…
- Meu amor?

c) Ela ainda hesitou: não queria dar-se. Mas depois chegou-se e encostou a cabeça no meu peito. Não a abraçei, deixou-se estar. Sentia o calor dela. Tinha que dizer qualquer coisa. Voltei a sentir as as unhas que arranhavam por cima da camisa. E duvidei outra vez da realidade. Tive medo. Retraí-me. Não a empurrei porque não fui capaz. Tive vergonha. Ela era tão sincera e era tão fácil magoá-la! Tive medo de não ser capaz de responder à sua entrega. Pedia demais. Uma história, uma aventura verdadeira?
As desigualdades recompunham-se e os humilhados resignam-se ou deixam que os usem.
Aceitei a sua delicadeza onde recuperava forças. E ela entregou-se. Não lhe pedia nada, dava quanto tinha!
Per Aage Brandt + Manuel Poppe+ MJ


















ASSOCIAÇÃO CULTURAL RECREATIVA DuZERO


Nome do projecto: Fluido Revelador

Responsável artístico: Maria Ribeiro, Miguel Justino

Responsável pela Produção:

Colaboradores:.

Contactos: Maria Ribeiro – 96 551 1944; Miguel Justino –


INTRODUÇÃO AO PROJECTO FLUIDO REVELADOR

Este projecto nasceu numa camara fotográfica. Nas suas ambiências de contrastes vermelhos e negros. Este projecto nasceu no liquido revelador de memórias e fotografias. A imagem surge no papel viajando do branco para o negro, mas permanece, tal como as recordações. As fotografias são muitas vezes uma forma de viajar no passado da nossa vida e garantir que não nos esquecemos de nada do que queremos recordar para sempre. Ao mesmo tempo existem momentos chave na nossa vida que nos afectam tão profundamento que passam a ser parte intrinseca do nosso ser. Às vezes há respostas nesses momentos e recorremos a eles para as encontrar. O processo de revelação de fotografia tem muito a ver com esse percorrer das nossas memórias. Às vezes eles tornam-se vivas e presentes ao ponto de as revivermos. E podemos assim contar uma história. Esta é a história do final de outra história. Este projecto também nasceu num telhado. No topo de um prédio anónimo e no encontro entre duas pessoas que se aliaram por uma necessidade de inventar o amor com carácter de urgência, mas que foram derrotadas pelo mundo. Como tantas outras. Todos carregamos histórias parecidas e tão diferentes.

Neste projecto queremos levar as pessoas a assistirem ao processo de revelação de uma imagem e que a sintam a aparecer perante elas, tornando-se cada vez mais nítida até se tornar completamente negra. Associando isto ao papel das memórias na nossa vida quisemos despertar a importancia desse facto no reviver das recordações de um estranho. Nessa partilha esperamos que exista um ponto de encontro com aquilo que realmente nos une. Fomos encontrar a possibilidade de transmitir essa ideia ao aliar a representação à fotografia e à declamação de textos, bem como à presença de música e da cromoterapia.



Sinopse
Personagens: Rute, Demian
Espaços: Cimo de um prédio; camara de revelação

O projecto Fluido Revelador tem dois espaços e tempos distintos, vários momentos intercalados embora em termos de espectaculo aconteça tudo no mesmo espaço fisico.
Os momentos que se passam no cimo de um prédio pertencem ao passado. São pedaços de recordações. Meio difusas pelo veu da mente. As duas personagens tem encontros recorrentes no cimo de um telhado para ai resolverem o seu conflito insolúvel. Apercebem-se antenas, estendais, chamines, uma amurada.
O segundo espaço é uma camara de revelação de fotografia. Tinas reveladoras, boiões de fluido revelador, estendais c papel fotográfico. O personagem Demian, mais velho, revela as fotos daquelas noites passadas no cimo de um telhado. E recorda. Surgem perguntas e respostas. Todas em tom vermelho e negro.


Materiais de ponto de partida: a fotografia, A mulher Nua de Manuel Poppe, A Casa do Incesto de Anais Nin, as recordações alheias.
publicado por JoffreJustino às 13:42
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FLUIDO REVELADOR de Miguel Justino

Demian está numa sala de revelação de fotografias. O mobiliário é estritamente o essencial. As tinas de revelação, uma ou duas mesas e cadeiras de apoio. Estendais com papel branco pendurado por molas… (pouco mais). Revela uma fotografia de um terraço. Uma imagem introdutória para todas as que se seguirão pois contextualiza no espaço a acção que decorre no tempo passado.
(texto de apoio) .
Uma sombra desliza, sem peso, por uma parede, nada a pode parar, como nada pode impedir um nome, ou um canto, ou uma ausencia, ou um contorno, ou o teu rosto de existir. Espero a noite para estar contigo. É mais uma vez o desejo de ver-te novamente. Sentir as tuas formas. Será que estás perdida nesse mundo enorme, tão grande que me deixa longe de ti, talvez até do outro lado…
Vejo-te como se estivesses aqui ao pé de mim mas não sinto a loucura que me atingia quase de madrugada e que me fazia ficar acordado a olhar para ti. O dia chegava depresa e os primeiros raios de Sol faziam desaparecer a tua imagem reflectida no espelho em frente à cama.
Penso em ti sem sentido algum. Sem nenhum razão especial. Já não há muito que faça sentido hoje.
Acho que queria entrar no teu mundo. Queria que soubesses do meu. Talvez se uma noite destas também te sentires perdida te lembres de mim…. e saberei enfim que te encontrei!



Cimo de um prédio… sentada na beirada está Rute, com as pernas pendendo no vazio…


Demian - … olá
Rute (assustada) – oh!… não te ouvi chegar
Demian sorri tranquilizador, divertido, quer dizer algo..
R – O que é?
D – Nada… estava só a pensar o que faz aqui um “anjo” sozinho…?
R – Nada… a noite gosto de vir aqui sozinha de vez em quando.
D - se quiseres que eu….

Ensaia um gesto d quem s vai embora…

R – Não….. deixa-te estar. Às vezes apetece-me companhia. A sério!!
D – Hmm… Nao insistas mais…
R - … Não gosto de ter de pedir. Já há muito tempo que não exijo nada. De ninguém!...
(pausa)
D – … As estrelas… são uma boa companhia…
R – Ah sim, as estrelas…. As cadentes são lindas. Daqui de cima apetece saltar para o escuro…. Tal e qual uma estrela cadente…
D – Queres abrir os braços? Voar e ir embora?
R - Quero…mas... desculpa!...
D – De quê? Não te preocupes, tens a noite como companheira… (levanta-se)

No sala de revelação de novo, Demian prepara uma outra foto. As recordações por vezes atropelam-se e certas palavras são portais para outros momentos. Esta foto introduz o momento seguinte. (texto de apoio 2 ) Já não te vejo brilhar quando os teus olhos lindos sorriem para mim. Hoje o teu sorriso é apenas uma imagem, um mecanismo do teu corpo aliado a uma forma de estar que me surpreende em ti.
Não consigo deixar de pensar nas largas noites em que ficávamos acordados a falar de nada, à espere de um só beijo. Depois juntávamo-nos e era assim terno e quente calmamente até o Sol acordar.
Depois veio o resto.
Partiste, por nada. Sem razão.
Quando te encontrava olhava-te como se olha alguém muito especial. Mas tu já não brilhas mais. Não como dantes.
Para onde irias? Nunca aceitas-te o que te pediam: que participasses daquilo que consideravas uma tragédia. Ninguém exigia nada. Qualquer coisa no coração, impediu-te de os ouvir.. O que diziam não te tocava, mas sofrias por isso. Eram vozes à tua volta. Estavas sozinha e não gostavas da solidão!



No terraço, assumindo as mesmas posições em que a acção foi interrompida

R – Não vás! Sinto q algo me invade. O que digo, o que sinto até, parece sempre pequeno demais. Para onde quer que me vire a vida parece sempre pequena demais, sem espaço para mim. Estou tão perdida. E nem saio do mesmo sítio…
D – Estás tão ausente….
R – Tu também estás ausente…
D - Diz-me porquê!?...
R – Diz-me tu porquê! Porque perguntas? Se perguntares só te magoas…
( Havia um quase desprezo no seu tom. E impaciência. No entanto era a mesma, na harmonia dos traços, na claridade do rosto. Era as duas coisas: uma mulher meiga, desamparada e uma mulher dura, ausente. Com uma força que descobria e assutava…)

D – Nem consigo acompanhar-te… Achas que se acordasses noutro tempo, serias outra pessoa? É assim um vazio tão imenso?
R – Não, não é. É cheio de coisas. Já nem as consigo distinguir da realidade. Tu estás aqui mas eu não estou contigo… entendes? Como pensas que eu me sinto?! És tu que me tornas ausente!
D – Mas eu estou aqui! Isto é real, existe! Se não acreditas que estamos juntos, acredita em mim, está aqui a prova! (agarra-a)

(Foto)

R – Ah sim?... então também deves estar doido.
D – Do que é que tens tanto medo? De quê?
R - … De tudo o resto, a frieza, triunfo, secura, apatia. As pessoas... … a noite, é amiga. Está sempre ali, nunca me incomoda… estou cada vez mais louca!
D – ... tão cheia de sentimentos…
R - … maus sentimentos..
D – Bons sentimentos. Precisas tanto de carinho que quando te toco no cabelo quase te agarras a mim para eu não fugir. Não te feches tanto!
R – Queres curar-me? Vais tratar-me?... não me podes cobrar estas sessões (riso trágico)

Demian agora revela a foto desse riso que tanto o impressionou de felicidade ou desespero. (texto de apoio 3)
Perguntas. Tantas questões. Todas frustradas. Queria fazer algo por ti, mas nunca soube bem o quê.
Quem era ela afinal? Não foi por medo que a deixei. Consegui afinal o quê? Nada…
As minhas palavras devolvias ao vazio. Desde o dia em que nos separámos não a voltei a ver. Acho que ficou lá…. Sinto-me um pouco triste….
Olhei-a como se olha uma rosa num deserto qualquer. Não chorei porque não quis… Mas apeteceu-me chorar!! …..




No cimo do telhado a acção prossegue onde foi interrompida.

D – Estou triste contigo. Não me respondes a nada. Isto são conversas surdas.
R – Se pudesse respondia-te… tu mereces. Mas não consigo… Na verdade nem vale a pena. Não queiras saber, nem sequer te preocupes…
D – Não sei como. Fascinas-me… e aqui dentro existe um espaço tão grande….
R – Tu és como todos os que andam à procura. Seja o que for que encontrem é indiferente.
D – Não sei se estou realmente à procura. Sei sinto sempre a falta de algo…… sempre. Aterroriza-me pensar nisso.
R – E o que é “isso” afinal? Consegues-me explicar?
D – Não há explicação… só nós temos total acesso a nos próprios. Muitas vezes não conseguimos é expressar o que sentimos. Isso sim, é um problema.
R – Para os outros talvez. Não para mim.
D – Tem sempre de partir de ti, anjo…
R – Mas para quem falamos nós afinal? Para quem? Ninguém nos ouve!! Não vou ser normal por conveniência. A toda as hora…
D – Falamos só de nós para os outros. É um ciclo que se completa no ponto de partida.
R – Pois a solidão aqui permanece inabalável (coloca a mão logo abaixo do peito) precisa de mim. Tem poucos amigos e eu faço-lhe companhia enquanto precisar…
D – Não precisas. Estou aqui contigo. Não tens de estar só. Eu posso ficar…
R – Ficas comigo? Ficas comigo? Fica comigo - fica comigo, fica, fica….fica…
(já não se ouvem as últimas palavras, abafadas pela cabeça enterrada no peito)
D – Claro que fico… (abraçam-se por um longo momento)


A foto deste abraço é a que Demian está a revelar agora. Uma foto dos dois, pois é sempre de fora para dentro que se fantasiam as vivências.(texto de apoio 4) Uma pequena parcela do Universo é um louvor à recordação de uma presença que permanece em mim. Qual de nós mantinha o outro prisioneiro?... de essências, silêncios esmagadores, normas e emoções extravagantes e desmedidas. É uma tempestade o que transportamos cá dentro. Culpados? Apenas de normalidade num mundo que padece de sentimentos. As pessoas vivem juntas como estrelas, sempre à procura de lugares mágicos no céu, sonhando sem descanso com tudo o que está algures, nunca prontos para partir amando alguém que está mesmo ali ao lado.
Prendi todos os que amei. Prendi nos momentos mais belos da minha vida. Fechei nas mãos a plenitude de cada hora. Os braços ainda me doem com desejo de a abraçar!


Voltam a abraçar-se e o tempo passado retoma o movimento. (m`usica)

R – Sshhhh… os sons assim… consegues ouvir? Que canção é esta?
D – Não sei. Não consigo ouvir nada.
R - … escuta... entre o silêncio. Presta atenção.
D – entre o silêncio? … …
R – À noite é assim… baques fortes como um coração a bater… um violino... (desprende-se e ensaia um passo de dança) Podia ter sido bailarina… mas desisti.
D – É pena…
R – Não, nem por isso. É para outros.
Ficava aqui a noite inteira a escutar esta cadência. Umas horas atrás estavam pessoas na rua, demasiado reais… e não havia nada..
D – Não havia cadência…? (arriscou)
R – Não havia nada…. alguém diz a verdade? Alguém luta? Onde está a criança que eu fui? O que fizeram de nós? O que nós deixamos que nos fizessem?O que acontece aos sonhos? Para que é que servem? Para queimar?Quem são esses que correm, matam?... que não vêem… que fogem… do que fogem? É como se não existisse ninguém Será que a culpa é do destino?
D – Eu acredito na inocência do destino.
R – Essa é forte… Inocência?! (prende um cigarro entre os lábios)
D – Toma… (lume) Não penso muito nisso. Não faz grande sentido.
R – Pois. Não faz. Já nada faz muito sentido. Mas as pessoas reais também não se importam. (pausa)
Escuta.... Já sentes o silêncio?
D – Já o consigo ouvir (atrapalhado)… mas não o sinto (mentiu)
R – Esta música é tão bonita. Olha! Quando eu dançava era assim. A rodopiar de um lado para o outro… dançava muito bem e as pessoas gostavam a sério. Eu rodava, rodava, rodava… vê! Vê!!




Na sala de revelação, Demian prepara a foto do bailado da Rute. (texto de apoio)
Menti demais. O silêncio escapuliu-se do telhado e foi procurar a sombra de outras estrelas.Éramos duas pessoas que o acaso fez encontrarem-se num mundo que descobrimos nesse parentesis de noite à nossa volta. Uma única vaga que pudemos retirar do oceano, ou um reflexo de Sol.
Os seu olhares maravilhosamente expressivos, mergulhavam no fundo da minha alma como se de uma alta janela se lançassem. As consequências da nossa história fazem-me aguardar uma nova cadência, A tua ausência dói e deixa a sua marca. Os meus olhos pesados sem a tua imagem, as minhas mãos sem tacto no vazio das tuas. O sonho traz a memória mas é a realidade que me aproxima de ti, agora que os dias correm depressa demais e as palavras ficaram presas numa fracção de instantes. Não depende tudo da interpretação que damos ao silêncio que nos rodeia?
Ela dançava, rindo e suspirando e respirando tudo a seu favor. Dançava os seus medos, dançava para atender a criticas que não podia ouvir, movida por alucinaçoes que não tinha.

Continua a rodar.

D – Tem calma. Pára! Meu deus! Pára! Estás a fugir!!
Não há ninguém a dançar aqui…. Não há música nenhuma! Calma… pára um pouco.
R – Dá-me uma razão para isso! Uma só e eu paro para sempre. Uma…
D - …. Não posso. Porque é que não vamos para dentro?
R – Para dentro não. Para quê? Não há lá nada à minha espera.
D – Eu não me vou embora. Fico contigo. Mesmo!
R –… não me consigo dar a ninguém. Continuo perseguida. Tudo o que dizes até pode ser verdade, até podes ter razão, mas é mais forte do que eu.
D – Vai chegar a altura em que vais ter de ceder.
R – Ceder? Talvez… libertar-me. Mas não. Não parece possível libertar-me.
Eu…
D – Eu…
D – Eu libertei-me a tempo de estar contigo…
R – … E como era antes? Era como uma prisão?
D – Sim. Penso que sim. Uma prisão todos os dias diferente.
Um dia acordei, olhei-me no espelho e decidi abrir o peito….
R – Choras-te de amor?
D – Chorei… mas não só de amor.
R – Como é bonita a saudade do que está assim dentro de nós! Nunca soube suportar a passagem das coisas. Tudo o que flui, tudo o que passa, mexe e sufoca!
(pausa)

(pausa!)

D – Vamos…? Ofereço-te um café.
R – Mmm… café. Está frio. Tanto frio… e já não há cadência.
(afastam-se juntos, lentamente)
D – Porque é que vens aqui à noite?O que é que podes estar `a espera de sentir?
R – Hoje sinto frio. Está muito frio esta noite.
D – Não era bem isso…
R –Paz. Muita paz. Aqui em cima sinto-me como se pertencesse ao vento. Há momentos em que perco o comtrolo e fico à espera, à beira do abismo
E de repente deixo-me ir…

Na sala de revelação, apercebemo-nos que Demian pendura uma última foto. Uma onde se apercebe um fluido, um movimento, semelhante a recordações que chegam e vão como uma maré. Sai da sala deixando atrás de si os estendais repletos de fotos-recordações de todos os momentos passados na companhia da Rute. (texto de apoio)
As palavras eram as estrelas da noite.
Podia ficar a noite inteira a seguir esta cadência, atrás da história. Agora q já passou quase uma hora, estará alguém a chorar no andar de baixo…? Vêm à cabeça restos de canções antigas, todas elas trazem outra história diferente. Mas só mais daqui a pouco é que me vou levantar e caminhar para a porta. Apesar de tudo continuo a seguir a minha intuiçao. Onde me vai levar não sei, mesmo temendo a minha vontade, continuo a segui-la. Provavelmente verei o mundo com outros olhos, porque é contigo, só contigo, que eu o quero ver. É a tua voz que me chega contudo, já. Mesmo que só retornes daqui a muitas noites.



END







TEXTOS DE APOIO X

.1. Ela desloca-se para a visibilidade vestida do seu corpo. Fica ofuscada. Por a visibilidade ser aguda, embora seja noite escura no mundo, ela é brilhante por todas as superfícies serem brilhantes, e olharem de modo tão metalicamente rígido e fixo que o corpo cede e desaparece de si próprio para mudar de forma e ressuscitar brilhante. Então ela torna-se outra e a sua visibilidade resplandece na escuridão e é um corpo, o seu…
Per Aage Brandt



2. Olhava agora a dançarina que ocupava todo o espaço numa dança sem braços. Dançava como se não pudesse seguir o ritmo da música. Dançava como se não ouvisse o som. Dança isolada e separada da música, de mim, da vida.
Ela dançava numa música com o ritmo dos ciclos da Terra, voltava-se ao voltar-se a Terra, virando todas as faces, ora para o escuro, ora dançando em direcção à luz.
A tremer agitada ficou a olhar para os braços agora estendidos diante dela.
Anais Nin


3. Os braços foram-me tirados, cantava. Fui punida por abraçar. Abracei. Quis abraçar a luz, o vento, o sol, a noite, o mundo inteiro e quis retê-los. Quis acariciar, curar, embalar, aclamar, envolver, cercar.
Forcei-os e prendi de tal modo que se partiram, partiram de mim. Tudo passou então a evitar-me. Estava condenada a não prender.
Anais Nin







4a) È Inverno. As águas geladas e as ruas desertas.
Ela fresca e decidida, eu alheio. Ia ao lado dela, como se natural, e aquela mulher não era natural, exagerava, em cada gesto. Ou, talvez os outros, que a observavam, achassem que ela exagerava, porque se tinham desabituadao da espontaneidade. Os outros eram o resto… … Quando se assumiam, os outros passavam a ser o resto. E vinham os arrepios: também eu assumira esses valores, desistindo?Porquê? A desistência, a indiferença, a distância cultivadas, eram uma forma de triunfar? De me desobrigar? Às vezes pesava-me. Depois fazia por esquecer.
Fixei-a, hesitante. Vi-a bem: olhos de pássaro, a maneira desajeitada de se enrolar; era um bicho, sem dúvida.
Mas tudo era natural. Ouvia vozes ao fundo. Via os vidros embaciados e as ruas abandonadas, a luz branca.

b)- Isso entristece-me tanto.
- Eu também,, deixa lá!
(silêncio)
- Ficaste magoada quando te disse que não admitias nada?
- Sim, mas não admito. Nunca por nunca. Não me queres aqui?
Queria-a. Bem bastava o frio… Tinha medo que se fosse embora.
- Queres que seja uma pessoa?
- Não és?
- Se tiver de ser… Eu sou um cisne! Vês as minhas penas brancas?As que estão caídas aos teus pés? As outras perdi-as. Vínhamos todos juntos, eu desci para me refrescar.Despi as penas. Não as encontrei mais. Procurei, procurei… e os outros não esperaram, foram-se embora. Era noite, assustei-me. Andei às voltas, a cidade estava às escuras, mas havia uma luz, aqui em cima. E foi a essa luz que me agarrei

…b) Pareceu outra vez de pedra, a fixar-me com raiva. Ia além do desprezo. E percebi que ela gostava de mim. Perguntei-lhe.
- Era capaz de viver contigo. Deste tudo o que tinhas para dar. Foste claro: querias alguém que te aquecesse. Mas havia tantas outras coisas antes! Cisnes, pássaros, nuvens que me acompanharam…. Tu fechavas-me disso e eu tive medo.
- Gostas de mim?
- Gosto. Escolhi-te.
- Tens a certeza?
- Tenho. Para sempre…
- Meu amor…
- Meu amor?

c) Ela ainda hesitou: não queria dar-se. Mas depois chegou-se e encostou a cabeça no meu peito. Não a abraçei, deixou-se estar. Sentia o calor dela. Tinha que dizer qualquer coisa. Voltei a sentir as as unhas que arranhavam por cima da camisa. E duvidei outra vez da realidade. Tive medo. Retraí-me. Não a empurrei porque não fui capaz. Tive vergonha. Ela era tão sincera e era tão fácil magoá-la! Tive medo de não ser capaz de responder à sua entrega. Pedia demais. Uma história, uma aventura verdadeira?
As desigualdades recompunham-se e os humilhados resignam-se ou deixam que os usem.
Aceitei a sua delicadeza onde recuperava forças. E ela entregou-se. Não lhe pedia nada, dava quanto tinha!
Per Aage Brandt + Manuel Poppe+ MJ


















ASSOCIAÇÃO CULTURAL RECREATIVA DuZERO


Nome do projecto: Fluido Revelador

Responsável artístico: Maria Ribeiro, Miguel Justino

Responsável pela Produção:

Colaboradores:.

Contactos: Maria Ribeiro – 96 551 1944; Miguel Justino –


INTRODUÇÃO AO PROJECTO FLUIDO REVELADOR

Este projecto nasceu numa camara fotográfica. Nas suas ambiências de contrastes vermelhos e negros. Este projecto nasceu no liquido revelador de memórias e fotografias. A imagem surge no papel viajando do branco para o negro, mas permanece, tal como as recordações. As fotografias são muitas vezes uma forma de viajar no passado da nossa vida e garantir que não nos esquecemos de nada do que queremos recordar para sempre. Ao mesmo tempo existem momentos chave na nossa vida que nos afectam tão profundamento que passam a ser parte intrinseca do nosso ser. Às vezes há respostas nesses momentos e recorremos a eles para as encontrar. O processo de revelação de fotografia tem muito a ver com esse percorrer das nossas memórias. Às vezes eles tornam-se vivas e presentes ao ponto de as revivermos. E podemos assim contar uma história. Esta é a história do final de outra história. Este projecto também nasceu num telhado. No topo de um prédio anónimo e no encontro entre duas pessoas que se aliaram por uma necessidade de inventar o amor com carácter de urgência, mas que foram derrotadas pelo mundo. Como tantas outras. Todos carregamos histórias parecidas e tão diferentes.

Neste projecto queremos levar as pessoas a assistirem ao processo de revelação de uma imagem e que a sintam a aparecer perante elas, tornando-se cada vez mais nítida até se tornar completamente negra. Associando isto ao papel das memórias na nossa vida quisemos despertar a importancia desse facto no reviver das recordações de um estranho. Nessa partilha esperamos que exista um ponto de encontro com aquilo que realmente nos une. Fomos encontrar a possibilidade de transmitir essa ideia ao aliar a representação à fotografia e à declamação de textos, bem como à presença de música e da cromoterapia.



Sinopse
Personagens: Rute, Demian
Espaços: Cimo de um prédio; camara de revelação

O projecto Fluido Revelador tem dois espaços e tempos distintos, vários momentos intercalados embora em termos de espectaculo aconteça tudo no mesmo espaço fisico.
Os momentos que se passam no cimo de um prédio pertencem ao passado. São pedaços de recordações. Meio difusas pelo veu da mente. As duas personagens tem encontros recorrentes no cimo de um telhado para ai resolverem o seu conflito insolúvel. Apercebem-se antenas, estendais, chamines, uma amurada.
O segundo espaço é uma camara de revelação de fotografia. Tinas reveladoras, boiões de fluido revelador, estendais c papel fotográfico. O personagem Demian, mais velho, revela as fotos daquelas noites passadas no cimo de um telhado. E recorda. Surgem perguntas e respostas. Todas em tom vermelho e negro.


Materiais de ponto de partida: a fotografia, A mulher Nua de Manuel Poppe, A Casa do Incesto de Anais Nin, as recordações alheias.
publicado por JoffreJustino às 13:40
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